sábado, 11 de setembro de 2010

Queimadas: Ainda fazemos desertos

"O que causa maior espanto é a perpetuação de um método tão rústico e agressivo após mais de um século de “Fazedores de desertos”. Em meio à campanha eleitoral, cabe ainda mais uma pergunta: quais as propostas dos principais candidatos à Presidência da República para acabar com o descaso histórico do Brasil com seus recursos naturais?"

Artigo de Elenita Malta Pereira, publicado no Estado de São Paulo
Historicamente, o Brasil queima. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), no monitoramento de queimadas disponível em seu website, registra cerca de quarenta mil focos de fogo em 2010, durante
outro quente agosto de nossa história.

O fogo como método de “preparo” para a terra remonta há milhares de anos, praticado pelos indígenas que habitavam o território das Américas. Como muitas tribos viviam em meio às florestas, a prática da agricultura já causava a perda da biodiversidade, através das queimadas.
É claro que a dimensão das áreas incineradas era ínfima, comparado ao que o colonizador branco devastou depois.
Assim como a prática do fogo, os discursos preocupados com as consequências para o homem e o meio também são antigos. Euclides da Cunha, há 108 anos já tratava, em seus escritos, o problema das queimadas. O assunto aparece na primeira parte de Os Sertões – A Terra – subcapítulo “Como se faz um deserto”, e no artigo “Fazedores de Desertos”, publicado em O Estado de S. Paulo em 22 de outubro de 1901.

No clássico Os Sertões, depois de apresentar dados geográficos, geológicos e climáticos dos sertões do norte, o autor discorre sobre a ação de “um agente geológico notável – o homem” – sobre o meio, que, “de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos”. Além do motivo agrícola, o hábito utilizado pelos indígenas para subsistência passou a ser praticado em larga escala pelos portugueses para desbravar o território, dilacerando a floresta “de chamas, para desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o norteavam, balizando a marcha das bandeiras”.

Euclides chega a citar decretos de 1713, por meio dos quais o governo colonial tentava “por paradeiro” nas queimadas. E alerta: “Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer dos séculos”.

No artigo “Fazedores de desertos”, um trecho poderia ter sido escritos nesta semana, em virtude do aumento dos focos de incêndio que chegaram a provocar uma nuvem de fumaça cobrindo grande parte do Brasil.
O volume de biomassa queimando gera tamanha emissão de carbono na atmosfera que “a temperatura altera-se, agravada nesse expandir-se de áreas de insolação cada vez maiores pelo poder absorvente dos nossos terrenos desnudados, cuja ardência se transmite por contato aos ares, e determina dois resultados inevitáveis: a pressão que diminui tendendo para um mínimo capaz de perturbar o curso regular dos ventos, desorientando-os pelos quatro rumos do quadrante, e a umidade relativa que decresce, tornando cada vez mais problemáticas as precipitações aquosas”.

Ainda que Euclides se referisse ao sertão nordestino, suas considerações cabem aos outros biomas que ainda sofrem com as queimadas no Brasil. Para o autor, o deserto iniciado por razões naturais era intensificado pelo fogo. Entretanto, não se trata de criar desertos como o Saara, ou o Atacama, por exemplo, e sim o alerta de que o homem pode contribuir na transformação de um bioma de floresta em uma espécie de savana. Pesquisas recentes têm demonstrado que Euclides tinha razão.
Geógrafos têm constatado que os fenômenos de desertificação e de savanização são acelerados quando o homem interfere. 

O que mais assombra na leitura desses textos de Euclides da Cunha não é tanto a preocupação ambiental, pois, como havia recebido uma sólida formação, Euclides dominava conceitos da geologia, geografia, biologia, e ecologia, correntes desde o século XIX nos meios científicos. Ideias conservacionistas também já eram manifestadas há tempos, por José Bonifácio (que também se manifestou contra as queimadas), entre outros autores.

O que causa maior espanto é a perpetuação de um método tão rústico e agressivo após mais de um século de “Fazedores de desertos”. Como isso ainda é possível no país onde se encontram as maiores reservas florestais do planeta? É queimando o Cerrado e a Amazônia que o Brasil pretende cumprir as metas apresentadas em Copenhagen, ano passado, de  reduzir as emissões de gases do efeito estufa entre 36,1% a 38,9%, até 2020? Em meio à campanha eleitoral, cabe ainda mais uma pergunta: quais as propostas dos principais candidatos à Presidência da República para acabar com o descaso histórico do Brasil com seus recursos naturais?

As queimadas são praticadas impunemente onde não há presença suficiente de agentes para coibi-las. A Brigada Prevfogo, apesar de sua atuação heróica, não tem como dar conta de milhares de focos espalhados em áreas imensas das regiões Norte e Centro-Oeste. Diante de uma cortina de fumaça, que atinge cidades como Porto Alegre (onde provocou chuva ácida), há milhares de quilômetros de distância, assistimos atônitos a emissão de toneladas de gás carbônico na atmosfera, além da perda irremediável de biodiversidade.

Para Euclides, o homem não conseguia conviver com a natureza: extinguia-a. Parece que continuamos com grande dificuldade de convivência, e com enorme relutância em entender o quanto é necessário esse convívio. Depois de tanto tempo, esses textos de Euclides ainda podem propiciar a reflexão sobre a relação do homem com a natureza, o que, hoje, mais do que nunca, é fundamental.

Elenita Malta Pereira é historiadora e mestranda em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 27/08/2010

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