Cristina G. Machado de Oliveira
Muitos são os problemas a serem enfrentados pelo homem contemporâneo ao discutir a respeito da moral, o individualismo, o narcisismo hedonista, a recusa da razão dominadora, o relativismo moral. Uma das preocupações do ser humano ao se comportar moralmente é saber distinguir o bem do mal. O sujeito moral, ao se perguntar como deve agir em determinada situação, certamente se aproxima de questões teóricas e abstratas tais como: Em que consiste o bem? Qual o fundamento da ação moral?
Colocando tais questões, estaremos entrando no campo da ética, teoria que realiza a reflexão crítica sobre a experiência dos bons costumes ou dos deveres, e que tem por fim discutir as noções e princípios que fundamentam a conduta moral. A palavra ética, nos dias atuais, quer dizer, a ciência de fato que tem por objeto a conduta dos homens, abstração feita dos juízos de apreciação que dirigem os seres nessa conduta, com efeito, qualquer hipótese que se adote sobre a origem e a natureza dos princípios da moral. É certo que os juízos de valor que tratam da conduta são fatos cujas características cabe determinar, e que o estudo da conduta não pode ser substituído pelo estudo direto destas, porque o comportamento dos homens nem sempre é conforme seus próprios juízos sobre o valor dos atos.
Logo, um dos grandes dilemas da filosofia moral pode ser resumido nas seguintes questões: Existem ou não valores morais válidos para todos os homens? Como justificar a classificação das ações em moralmente corretas ou incorretas, boas ou más?
Para os antigos filósofos, tal como Platão, a justiça e a virtude centralizavam todo o problema moral. O termo virtude tem, em grego, um significado bem mais rico e bem diferente do que tem para nós hoje. Designa o que faz a excelência, a perfeição de um ser, em qualquer ser considerado e em qualquer domínio de atividade. É, para cada um, o poder de realizar aquilo que ele em conformidade com uma ordem, entendendo-se que ordem, para os antigos, era sinônimo de “valor”. É, portanto, a prática ordenada de seu próprio bem, de onde resulta harmonia e felicidade. Porém, como definir a excelência de um ser, e posto que se trata do homem, o que é a excelência humana? Se não houvesse qualquer ambigüidade nesse assunto, Sócrates não teria se preocupado em questionar com tanta freqüência o problema da essência da virtude, e sofistica não se distinguiria da filosofia. A educação moral, essa é, realmente, a tarefa tanto do sofista como do filósofo, um e outro reivindicando para si os mesmos valores. Eles celebram a sabedoria, a justiça, a temperança e a coragem, mas o que esses termos recobrem? Trata-se de partes de uma única virtude, da mesma forma como os olhos, as orelhas e o nariz são partes do rosto? Ou trata-se de nomes diferentes de uma mesma e única virtude?
Nos tempos da criação, os deuses confiaram a Epimeteu e a Prometeu o cuidado de dotar cada espécie das qualidades necessárias à existência. Epimeteu abasteceu tão generosamente os animais e os vegetais que, quando chegou a vez da espécie humana, nada mais restava. Prometeu decidiu então compensar a imprevidência do irmão e furtou de Hefesto e Atena o fogo. “Eis, portanto, como o homem conquistou a inteligência que se aplica às necessidades da vida” (Protágoras, 321d). Entretanto, se a habilidade técnica substitui com facilidade o instinto em tudo o que se refere à satisfação das necessidades e, em geral, à adaptação, ela não basta para permitir que os homens se entendam e administrem as cidades. A discórdia reina entre eles e ameaça aniquilá-los. “Foi então que Zeus, temendo o desaparecimento total da nossa espécie, enviou Hermes para levar aos homens o sentimento da honra e do direito, a fim de que esses sentimentos fossem o adorno das cidades e o laço através do qual se unissem as amizades”. (Protágoras, 322c) Esse sentido da justiça, porém, não deve ser repartido de forma desigual, como se, à semelhança das aptidões técnicas, exigisse uma competência especial. Nesse sentido, na época grega o conceito de justiça e virtude eram o cerne do problema moral.
Já na idade moderna a justiça é antes de tudo um princípio ordenador da sociedade. A ética deve se estabelecer em torno de princípios abstratos, assim como é abordado em Kant, o princípio supremo da moralidade. Uma de suas grandes questões filosóficas é o da ação humana, ou seja, o problema moral. Tratava-se de saber não o que o homem conhece ou pode conhecer a respeito do mundo e da realidade última, mas do que deve fazer, de como agir em relação a seus semelhantes, de como proceder para obter a felicidade ou alcançar o bem supremo.
Os modelos clássicos de moral nos dispõem de conceitos morais unívocos, porém o filósofo contemporâneo, Mark Johnson, discorda e questiona. Na perspectiva dele os conceitos que utilizamos em situações morais são essencialmente vagos, em comparação ao padrão de clareza e pureza de Kant. Na visão de Johnson temos que estender os juízos morais através da imaginação (construção metafórica), desse modo poderemos nos colocar no “lugar” do outro donde, assim, entenderíamos a relação moral.
No livro Moral Imagination Johnson, em linhas gerais, defende a tese de que a qualidade moral depende essencialmente do cultivo da nossa imaginação moral. Na visão dele o fornecimento de razões morais é uma prática imaginativa construtiva fundamentada basicamente no uso de metáforas, já que nossos conceitos morais mais essenciais são definidos metaforicamente (ex. vontade, liberdade, direito, lei, ação) e que o modo como conceituamos uma situação particular depende do uso sistemático de metáforas conceituais que tornam possível o entendimento comum aos membros de uma cultura. Nesse sentido, a proposta da obra é fornecer uma visão construtiva da concepção da racionalidade moral como imaginativa e munir uma compreensão expansiva e construtiva da moralidade que nos ajude a viver uma vida melhor.
A teoria da imaginação, nesse sentido, está na base da oposição entre o absolutismo e o relativismo. Johnson nega os dois termos, pois ambos alimentam-se de conceitos vistos por ele como errôneos tal qual a racionalidade. De acordo com ele, o absolutismo moral assume a existência de leis morais absolutas que nos dizem o que é certo e errado. Já o relativismo moral aceita a concepção de moralidade proposta, mas caracteriza as regras sempre inerentes a determinada cultura, e recusa que a racionalidade possa fornecer regras, conclui que a moralidade é irracional e subjetiva, supondo, portanto, que só haja racionalidade e objetividade onde há leis universais.
Dessa maneira, a proposta de Johnson é mostrar que tal concepção está comprometida com uma compreensão errada da natureza humana. A questão da natureza da razão e da imaginação humana é empírica. As ciências cognitivas podem então nos ensinar muito acerca de certos conceitos envolvidos na nossa compreensão moral. Assim, sua proposta é fornecer uma visão construtiva da visão da racionalidade moral como imaginativa. Tal concepção não tem por objetivo munir um sistema de regras, mas sim uma compreensão moral genuína que auxilie nas nossas deliberações morais.
Ao longo do desenvolvimento do livro Johnson utiliza alguns elementos primordiais para a sua argumentação, são eles: teoria dos protótipos, estrutura semântica, entendimento metafórico, experiências básicas e narrativas. Através desses ele irá desenvolver o seu pensamento em relação a moral.
Johnson inicia por caracterizar o modelo da moralidade tradicional – a teoria popular da lei moral, esta está ancorada em uma teoria psicológica da mente e da natureza humana. A teoria da lei moral é uma visão segundo a qual a moralidade consiste na subsunção de casos concretos a leis morais. Por outro lado a teoria psicológica pressuposta pela teoria da lei moral reconhece a existência do mental e o caracteriza como composto de quatro faculdades – percepções, paixões, vontade e razão. As percepções recebem impressões e as transmitem à razão e às paixões, estas são ativadas diretamente por percepções ou indiretamente pela memória ou por razões deduzidas das percepções. A vontade é capaz de tomar decisões livremente, e a faculdade da razão realiza cálculos. As paixões e a razão exercem força sobre a vontade que por sua vez exerce força sobre o corpo e as ações. A vontade pode resistir à força exercida pela razão e, muitas vezes, à força exercida pelas paixões. As paixões e a razão exercem forças opostas.
Assim, a teoria da lei moral assume a teoria psicológica, e a dualidade entre o físico e o mental Considera o problema moral como proveniente do fato das pessoas possuírem vontade livre e poderem ajudar ou prejudicar umas as outras. Reconhece leis morais universais capazes de prescrever as ações que devem ser realizadas e proibir outras ações. Assume a razão como guia privilegiado para a motivação moral. A crítica feita em relação a essa teoria é que nossa tradição moral deve ser vista apenas como uma entre outras, não havendo nela nada de absoluto, pois os conceitos que a definem são metafísicos. Tal teoria tende a ignorar ou negar o papel da imaginação nas nossas deliberações morais, possuindo um caráter necessariamente negativo e restritivo.
A teoria da lei moral na tradição filosófica coloca como idéia central o ser humano possuindo uma razão universal capaz de reconhecer um sistema de princípios morais que nos diga como agir. Assume a dualidade entre o racional e o corporal, conferindo privilégio a nossa natureza enquanto seres racionais. Um exemplo desse tipo de teoria é a ética racional kantiana, onde o fundamento da moralidade não é mais a razão divina, mas a razão universal. Aceita como correta a descrição feita pela teoria da lei moral e, por seguinte, que se aplique a todos os seres humanos as concepções de agente moral, dever, vontade, razão e liberdade por ela pressupostas.
É certo que existem valores morais diversos, contudo, de acordo com Johnson no mundo não existem escolhas, pois temos o limite social, cultural etc. Nós somos inseridos no mundo e este sendo social já é formado, situado, sendo assim, tem sentido afirmarmos que o eu pode deliberar totalmente?
A deliberação moral reside na questão – que tipo de pessoa quero ser? Então, a moral é quando a decisão contribui para a identidade do seu “eu”.
De acordo com o modelo popular temos o “eu” movido pelo instinto e não um “eu” racional e ahistórico. O que determina o “eu”?
Johnson cita e explica algumas características objetivistas do “eu”, são elas:
1- O eu é racional, essencial – para o objetivismo moral o agente moral deve ser um tipo de quase-objeto com uma natureza determina, fixa, assim é considerado como tendo uma natureza imutável que partilha com todas as outras criaturas de sua espécie.
2- O eu é não histórico – como a essência do agente moral não é modificada por condições históricas o “eu” permanece fixo, independentemente da cultura e do tempo.
3- O eu é universal – pelo fato de possuirmos razão prática os agentes morais são todos iguais, pois agir moralmente é considerado como um problema, pois temos que sair de nossas particularidades e nos dar conta da natureza racional universal partilhada em virtude da qual constituímos uma comunidade moral universal.
4 – O eu é bifurcado em razão e desejo – estabelece que o eu consiste em entendimento e desejo, sendo distintos um do outro, porém a máquina da mente, por si mesma, nada quer, e o desejo sem o auxílio do entendimento, nada pode ver. Essa dupla natureza é a verdadeira força motivacional do ser, pois nos empurram e determinam os objetos de nossos apetites ou aversões.
5- O eu é individual e atômico – define assim por entender as pessoas como fontes de seus próprios fins, já que a racionalidade e a liberdade são inerentes, propriedades essenciais das pessoas individuais.
6 – O eu é separado de seus atos – o que ilustra muito bem essa característica é o racionalismo kantiano, já que Kant alega que nosso entendimento moral comum reconhece corretamente que o eu pode ter valor moral em si mesmo, a despeito de suas ações.
Dentre essas características Johnson afirma que existem duas problemáticas. São: o “eu dividido” e o “eu individual”, pois na primeira as duas faculdades estão separadas, porém devem estar unidas para poderem juntas serem base para a vontade racional. E na segunda característica, o objetivismo vê o eu como tendo uma essência fixa, mas não há alguma “coisa” estática que é ou deva ser que determina o que o agente moral deva fazer. A identidade de alguém como agente moral muda e é moldado pela forma de alguém deliberar sobre seus fins e propósitos.
Nos seres humanos a identidade do eu é sempre uma continuidade de um processo de experimentação ao longo do tempo, por isso, a compreensão da capacidade moral de agir deve reconhecer este caráter temporal. A narrativa, dessa forma, é o modo pelo qual nós podemos melhor sintetizar as ações e eventos, instituindo uma unidade narrativa, ou seja, um encadeamento seqüencial dos acontecimentos. Esta unidade narrativa também nos fornece justificativas para certos atos, e ao mesmo tempo possibilita uma espécie de previsão imaginativa das conseqüências do futuro.
Johnson propõe uma visão “experimentalista”, segundo a qual a pessoa deve ser encarada como um eu-em-processo, um organismo biológico auto-transformador em intercâmbio com um ambiente físico, interpessoal e cultural. A deliberação moral é a dimensão do procedimento adaptativo complexo que diz respeito ao desenvolvimento do nosso caráter, à natureza de nossas relações com os outros, e a nossa habilidade de discernir soluções construtivas que desempenhem possibilidades para o significado e bem estar em nossas vidas interdependentes. Nesse sentido, a visão experimentalista vê o eu e suas ações entrelaçadas em um processo experimental básico, um procedimento de interações físicas, interpessoais e culturais. Assim, o pano de fundo narrativo é imprescindível para o nosso entendimento de seqüências de ação, ou, em outras palavras, os eventos são sintetizados na narração de modo a construírem uma cadeia sucessiva que lhes reveste de sentido e unidade. Porém, nossas vidas não são simplesmente uma série de eventos incoerentes. A maior parte desta atividade sintetizante, de acordo com Johnson, é realizada por estruturas imaginativas e a estrutura narrativa fornece a unidade sintética mais compreensível que podemos alcançar. Dessa maneira, o motivo porque a narrativa é a maneira mais adequada de explicação das ações humanas é que as formas de ação podem ser apreendidas metaforicamente como “jornadas”, isto é, uma síntese das partes em um todo unificado com uma certa estrutura. Logo, enquanto nós podemos capturar certos aspectos de nossa experiência via conceitos, modelos, proposições, metáforas e paradigmas, somente a narrativa compreende a temporalidade e a organização teleológica ao nível genérico no qual nós perseguimos a unidade e o significado para a vida.
Mas como se dá a construção de narrativas? Esta é produzida a partir da infância, de nossas experiências confusas, inicialmente em resposta às perguntas mais primordiais, tais como: “quem”, “o que”, “quando”, “onde”, “porque” e “como”.
Desse modo, Johnson reafirma a sua intenção de rejeitar a tendência tradicional que adota um ponto de vista atemporal da humanidade e de suas ações, e afirma a importância da função de recursos imaginativos no contexto tipicamente narrativo em que se desenvolve a vida humana.
Em suma, nós somos basicamente seres em processo, criaturas sintetizantes cujos corpos nos situam em um mundo que é ao mesmo tempo físico, social, moral e político. Portanto, nós estamos localizados em uma tradição cultural específica que supre o estoque de funções sociais, estruturas, modelos e metáforas que são o nosso modo de apreender o mundo, compreendê-lo e raciocinar sobre ele. Assim, os julgamentos morais ocorrem nesse panorama biológico-cultural e fazem uso dessas ferramentas imaginativas. E por fim, como o processo sintetizante mais completo, a narrativa desempenha o papel de organizar nossa identidade e de avaliar nossos cenários ao fazermos escolhas morais.
Assim, nós podemos aprender a viver não somente com múltiplos sistemas morais, mas também com a multiplicidade de valores e bens que experimentamos em nossas próprias vidas. Nós negociamos nosso caminho por intermédio desse emaranhado que é a moral deliberativa, nunca certos de onde poderemos finalizar, mas guiando somente nossas idéias e nossa ação no mundo.
Bibliografia:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo: Ed. Moderna, 1992.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia – Ser, Saber e Fazer. São Paulo: Ed. Saraiva, 1997.
JOHNSON, Mark. Moral Imagination. --
KANT. Obras Incompletas. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger.São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores)
MANON, Simone. Platão. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Muitos são os problemas a serem enfrentados pelo homem contemporâneo ao discutir a respeito da moral, o individualismo, o narcisismo hedonista, a recusa da razão dominadora, o relativismo moral. Uma das preocupações do ser humano ao se comportar moralmente é saber distinguir o bem do mal. O sujeito moral, ao se perguntar como deve agir em determinada situação, certamente se aproxima de questões teóricas e abstratas tais como: Em que consiste o bem? Qual o fundamento da ação moral?
Colocando tais questões, estaremos entrando no campo da ética, teoria que realiza a reflexão crítica sobre a experiência dos bons costumes ou dos deveres, e que tem por fim discutir as noções e princípios que fundamentam a conduta moral. A palavra ética, nos dias atuais, quer dizer, a ciência de fato que tem por objeto a conduta dos homens, abstração feita dos juízos de apreciação que dirigem os seres nessa conduta, com efeito, qualquer hipótese que se adote sobre a origem e a natureza dos princípios da moral. É certo que os juízos de valor que tratam da conduta são fatos cujas características cabe determinar, e que o estudo da conduta não pode ser substituído pelo estudo direto destas, porque o comportamento dos homens nem sempre é conforme seus próprios juízos sobre o valor dos atos.
Logo, um dos grandes dilemas da filosofia moral pode ser resumido nas seguintes questões: Existem ou não valores morais válidos para todos os homens? Como justificar a classificação das ações em moralmente corretas ou incorretas, boas ou más?
Para os antigos filósofos, tal como Platão, a justiça e a virtude centralizavam todo o problema moral. O termo virtude tem, em grego, um significado bem mais rico e bem diferente do que tem para nós hoje. Designa o que faz a excelência, a perfeição de um ser, em qualquer ser considerado e em qualquer domínio de atividade. É, para cada um, o poder de realizar aquilo que ele em conformidade com uma ordem, entendendo-se que ordem, para os antigos, era sinônimo de “valor”. É, portanto, a prática ordenada de seu próprio bem, de onde resulta harmonia e felicidade. Porém, como definir a excelência de um ser, e posto que se trata do homem, o que é a excelência humana? Se não houvesse qualquer ambigüidade nesse assunto, Sócrates não teria se preocupado em questionar com tanta freqüência o problema da essência da virtude, e sofistica não se distinguiria da filosofia. A educação moral, essa é, realmente, a tarefa tanto do sofista como do filósofo, um e outro reivindicando para si os mesmos valores. Eles celebram a sabedoria, a justiça, a temperança e a coragem, mas o que esses termos recobrem? Trata-se de partes de uma única virtude, da mesma forma como os olhos, as orelhas e o nariz são partes do rosto? Ou trata-se de nomes diferentes de uma mesma e única virtude?
Nos tempos da criação, os deuses confiaram a Epimeteu e a Prometeu o cuidado de dotar cada espécie das qualidades necessárias à existência. Epimeteu abasteceu tão generosamente os animais e os vegetais que, quando chegou a vez da espécie humana, nada mais restava. Prometeu decidiu então compensar a imprevidência do irmão e furtou de Hefesto e Atena o fogo. “Eis, portanto, como o homem conquistou a inteligência que se aplica às necessidades da vida” (Protágoras, 321d). Entretanto, se a habilidade técnica substitui com facilidade o instinto em tudo o que se refere à satisfação das necessidades e, em geral, à adaptação, ela não basta para permitir que os homens se entendam e administrem as cidades. A discórdia reina entre eles e ameaça aniquilá-los. “Foi então que Zeus, temendo o desaparecimento total da nossa espécie, enviou Hermes para levar aos homens o sentimento da honra e do direito, a fim de que esses sentimentos fossem o adorno das cidades e o laço através do qual se unissem as amizades”. (Protágoras, 322c) Esse sentido da justiça, porém, não deve ser repartido de forma desigual, como se, à semelhança das aptidões técnicas, exigisse uma competência especial. Nesse sentido, na época grega o conceito de justiça e virtude eram o cerne do problema moral.
Já na idade moderna a justiça é antes de tudo um princípio ordenador da sociedade. A ética deve se estabelecer em torno de princípios abstratos, assim como é abordado em Kant, o princípio supremo da moralidade. Uma de suas grandes questões filosóficas é o da ação humana, ou seja, o problema moral. Tratava-se de saber não o que o homem conhece ou pode conhecer a respeito do mundo e da realidade última, mas do que deve fazer, de como agir em relação a seus semelhantes, de como proceder para obter a felicidade ou alcançar o bem supremo.
Os modelos clássicos de moral nos dispõem de conceitos morais unívocos, porém o filósofo contemporâneo, Mark Johnson, discorda e questiona. Na perspectiva dele os conceitos que utilizamos em situações morais são essencialmente vagos, em comparação ao padrão de clareza e pureza de Kant. Na visão de Johnson temos que estender os juízos morais através da imaginação (construção metafórica), desse modo poderemos nos colocar no “lugar” do outro donde, assim, entenderíamos a relação moral.
No livro Moral Imagination Johnson, em linhas gerais, defende a tese de que a qualidade moral depende essencialmente do cultivo da nossa imaginação moral. Na visão dele o fornecimento de razões morais é uma prática imaginativa construtiva fundamentada basicamente no uso de metáforas, já que nossos conceitos morais mais essenciais são definidos metaforicamente (ex. vontade, liberdade, direito, lei, ação) e que o modo como conceituamos uma situação particular depende do uso sistemático de metáforas conceituais que tornam possível o entendimento comum aos membros de uma cultura. Nesse sentido, a proposta da obra é fornecer uma visão construtiva da concepção da racionalidade moral como imaginativa e munir uma compreensão expansiva e construtiva da moralidade que nos ajude a viver uma vida melhor.
A teoria da imaginação, nesse sentido, está na base da oposição entre o absolutismo e o relativismo. Johnson nega os dois termos, pois ambos alimentam-se de conceitos vistos por ele como errôneos tal qual a racionalidade. De acordo com ele, o absolutismo moral assume a existência de leis morais absolutas que nos dizem o que é certo e errado. Já o relativismo moral aceita a concepção de moralidade proposta, mas caracteriza as regras sempre inerentes a determinada cultura, e recusa que a racionalidade possa fornecer regras, conclui que a moralidade é irracional e subjetiva, supondo, portanto, que só haja racionalidade e objetividade onde há leis universais.
Dessa maneira, a proposta de Johnson é mostrar que tal concepção está comprometida com uma compreensão errada da natureza humana. A questão da natureza da razão e da imaginação humana é empírica. As ciências cognitivas podem então nos ensinar muito acerca de certos conceitos envolvidos na nossa compreensão moral. Assim, sua proposta é fornecer uma visão construtiva da visão da racionalidade moral como imaginativa. Tal concepção não tem por objetivo munir um sistema de regras, mas sim uma compreensão moral genuína que auxilie nas nossas deliberações morais.
Ao longo do desenvolvimento do livro Johnson utiliza alguns elementos primordiais para a sua argumentação, são eles: teoria dos protótipos, estrutura semântica, entendimento metafórico, experiências básicas e narrativas. Através desses ele irá desenvolver o seu pensamento em relação a moral.
Johnson inicia por caracterizar o modelo da moralidade tradicional – a teoria popular da lei moral, esta está ancorada em uma teoria psicológica da mente e da natureza humana. A teoria da lei moral é uma visão segundo a qual a moralidade consiste na subsunção de casos concretos a leis morais. Por outro lado a teoria psicológica pressuposta pela teoria da lei moral reconhece a existência do mental e o caracteriza como composto de quatro faculdades – percepções, paixões, vontade e razão. As percepções recebem impressões e as transmitem à razão e às paixões, estas são ativadas diretamente por percepções ou indiretamente pela memória ou por razões deduzidas das percepções. A vontade é capaz de tomar decisões livremente, e a faculdade da razão realiza cálculos. As paixões e a razão exercem força sobre a vontade que por sua vez exerce força sobre o corpo e as ações. A vontade pode resistir à força exercida pela razão e, muitas vezes, à força exercida pelas paixões. As paixões e a razão exercem forças opostas.
Assim, a teoria da lei moral assume a teoria psicológica, e a dualidade entre o físico e o mental Considera o problema moral como proveniente do fato das pessoas possuírem vontade livre e poderem ajudar ou prejudicar umas as outras. Reconhece leis morais universais capazes de prescrever as ações que devem ser realizadas e proibir outras ações. Assume a razão como guia privilegiado para a motivação moral. A crítica feita em relação a essa teoria é que nossa tradição moral deve ser vista apenas como uma entre outras, não havendo nela nada de absoluto, pois os conceitos que a definem são metafísicos. Tal teoria tende a ignorar ou negar o papel da imaginação nas nossas deliberações morais, possuindo um caráter necessariamente negativo e restritivo.
A teoria da lei moral na tradição filosófica coloca como idéia central o ser humano possuindo uma razão universal capaz de reconhecer um sistema de princípios morais que nos diga como agir. Assume a dualidade entre o racional e o corporal, conferindo privilégio a nossa natureza enquanto seres racionais. Um exemplo desse tipo de teoria é a ética racional kantiana, onde o fundamento da moralidade não é mais a razão divina, mas a razão universal. Aceita como correta a descrição feita pela teoria da lei moral e, por seguinte, que se aplique a todos os seres humanos as concepções de agente moral, dever, vontade, razão e liberdade por ela pressupostas.
É certo que existem valores morais diversos, contudo, de acordo com Johnson no mundo não existem escolhas, pois temos o limite social, cultural etc. Nós somos inseridos no mundo e este sendo social já é formado, situado, sendo assim, tem sentido afirmarmos que o eu pode deliberar totalmente?
A deliberação moral reside na questão – que tipo de pessoa quero ser? Então, a moral é quando a decisão contribui para a identidade do seu “eu”.
De acordo com o modelo popular temos o “eu” movido pelo instinto e não um “eu” racional e ahistórico. O que determina o “eu”?
Johnson cita e explica algumas características objetivistas do “eu”, são elas:
1- O eu é racional, essencial – para o objetivismo moral o agente moral deve ser um tipo de quase-objeto com uma natureza determina, fixa, assim é considerado como tendo uma natureza imutável que partilha com todas as outras criaturas de sua espécie.
2- O eu é não histórico – como a essência do agente moral não é modificada por condições históricas o “eu” permanece fixo, independentemente da cultura e do tempo.
3- O eu é universal – pelo fato de possuirmos razão prática os agentes morais são todos iguais, pois agir moralmente é considerado como um problema, pois temos que sair de nossas particularidades e nos dar conta da natureza racional universal partilhada em virtude da qual constituímos uma comunidade moral universal.
4 – O eu é bifurcado em razão e desejo – estabelece que o eu consiste em entendimento e desejo, sendo distintos um do outro, porém a máquina da mente, por si mesma, nada quer, e o desejo sem o auxílio do entendimento, nada pode ver. Essa dupla natureza é a verdadeira força motivacional do ser, pois nos empurram e determinam os objetos de nossos apetites ou aversões.
5- O eu é individual e atômico – define assim por entender as pessoas como fontes de seus próprios fins, já que a racionalidade e a liberdade são inerentes, propriedades essenciais das pessoas individuais.
6 – O eu é separado de seus atos – o que ilustra muito bem essa característica é o racionalismo kantiano, já que Kant alega que nosso entendimento moral comum reconhece corretamente que o eu pode ter valor moral em si mesmo, a despeito de suas ações.
Dentre essas características Johnson afirma que existem duas problemáticas. São: o “eu dividido” e o “eu individual”, pois na primeira as duas faculdades estão separadas, porém devem estar unidas para poderem juntas serem base para a vontade racional. E na segunda característica, o objetivismo vê o eu como tendo uma essência fixa, mas não há alguma “coisa” estática que é ou deva ser que determina o que o agente moral deva fazer. A identidade de alguém como agente moral muda e é moldado pela forma de alguém deliberar sobre seus fins e propósitos.
Nos seres humanos a identidade do eu é sempre uma continuidade de um processo de experimentação ao longo do tempo, por isso, a compreensão da capacidade moral de agir deve reconhecer este caráter temporal. A narrativa, dessa forma, é o modo pelo qual nós podemos melhor sintetizar as ações e eventos, instituindo uma unidade narrativa, ou seja, um encadeamento seqüencial dos acontecimentos. Esta unidade narrativa também nos fornece justificativas para certos atos, e ao mesmo tempo possibilita uma espécie de previsão imaginativa das conseqüências do futuro.
Johnson propõe uma visão “experimentalista”, segundo a qual a pessoa deve ser encarada como um eu-em-processo, um organismo biológico auto-transformador em intercâmbio com um ambiente físico, interpessoal e cultural. A deliberação moral é a dimensão do procedimento adaptativo complexo que diz respeito ao desenvolvimento do nosso caráter, à natureza de nossas relações com os outros, e a nossa habilidade de discernir soluções construtivas que desempenhem possibilidades para o significado e bem estar em nossas vidas interdependentes. Nesse sentido, a visão experimentalista vê o eu e suas ações entrelaçadas em um processo experimental básico, um procedimento de interações físicas, interpessoais e culturais. Assim, o pano de fundo narrativo é imprescindível para o nosso entendimento de seqüências de ação, ou, em outras palavras, os eventos são sintetizados na narração de modo a construírem uma cadeia sucessiva que lhes reveste de sentido e unidade. Porém, nossas vidas não são simplesmente uma série de eventos incoerentes. A maior parte desta atividade sintetizante, de acordo com Johnson, é realizada por estruturas imaginativas e a estrutura narrativa fornece a unidade sintética mais compreensível que podemos alcançar. Dessa maneira, o motivo porque a narrativa é a maneira mais adequada de explicação das ações humanas é que as formas de ação podem ser apreendidas metaforicamente como “jornadas”, isto é, uma síntese das partes em um todo unificado com uma certa estrutura. Logo, enquanto nós podemos capturar certos aspectos de nossa experiência via conceitos, modelos, proposições, metáforas e paradigmas, somente a narrativa compreende a temporalidade e a organização teleológica ao nível genérico no qual nós perseguimos a unidade e o significado para a vida.
Mas como se dá a construção de narrativas? Esta é produzida a partir da infância, de nossas experiências confusas, inicialmente em resposta às perguntas mais primordiais, tais como: “quem”, “o que”, “quando”, “onde”, “porque” e “como”.
Desse modo, Johnson reafirma a sua intenção de rejeitar a tendência tradicional que adota um ponto de vista atemporal da humanidade e de suas ações, e afirma a importância da função de recursos imaginativos no contexto tipicamente narrativo em que se desenvolve a vida humana.
Em suma, nós somos basicamente seres em processo, criaturas sintetizantes cujos corpos nos situam em um mundo que é ao mesmo tempo físico, social, moral e político. Portanto, nós estamos localizados em uma tradição cultural específica que supre o estoque de funções sociais, estruturas, modelos e metáforas que são o nosso modo de apreender o mundo, compreendê-lo e raciocinar sobre ele. Assim, os julgamentos morais ocorrem nesse panorama biológico-cultural e fazem uso dessas ferramentas imaginativas. E por fim, como o processo sintetizante mais completo, a narrativa desempenha o papel de organizar nossa identidade e de avaliar nossos cenários ao fazermos escolhas morais.
Assim, nós podemos aprender a viver não somente com múltiplos sistemas morais, mas também com a multiplicidade de valores e bens que experimentamos em nossas próprias vidas. Nós negociamos nosso caminho por intermédio desse emaranhado que é a moral deliberativa, nunca certos de onde poderemos finalizar, mas guiando somente nossas idéias e nossa ação no mundo.
Bibliografia:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo: Ed. Moderna, 1992.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia – Ser, Saber e Fazer. São Paulo: Ed. Saraiva, 1997.
JOHNSON, Mark. Moral Imagination. --
KANT. Obras Incompletas. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger.São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores)
MANON, Simone. Platão. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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