Rodrigo Duarte Professor do departamento de Filosofia da Fafich
Durante muito tempo a própria palavra “ética” sequer fazia parte do vocabulário do português falado no Brasil, possivelmente em virtude de a “coisa” que lhe correspondia estar há muito em desuso entre nós. Coube aos meios de comunicação de massa recolocar o termo na ordem do dia, principalmente após os escândalos de corrupção que levaram ao impeachment de Fernando Collor de Melo e que desde então, vêm atingindo altos representantes do Estado brasileiro, sejam do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. O fato de os meios de comunicação terem sido responsáveis pela reintrodução da palavra “ética” no português corrente leva a perguntar se há alguma afinidade, também, da “coisa” ética – e não apenas da palavra – com os mass media e, se houver, que tipo de relacionamento é esse.
Um caminho possível para esse questionamento é começar pela etimologia da palavra “ética”. Ela vem do termo grego ethos, que significava, principalmente, uso, costume, hábito. O fato de a palavra ser grega indica, também, a origem histórica da ética como disciplina filosófica: desde os filósofos pré-socráticos – ainda no século VI a.C. –, havia indagações sobre o modo de ser humano que fosse mais de acordo com o logos, i.e., com a razão. Toda a maiêutica (“parto de idéias”) de Sócrates tem como objetivo atingir a clareza sobre esse acordo entre o ethos e o logos, entre o costume e a racionalidade.
Os dois filósofos que lhe sucederam, Platão e Aristóteles, responsáveis pelo chamado “período sistemático” da filosofia grega, têm suas obras repletas de reflexões sobre a natureza da virtude, da felicidade, do bem etc. Aristóteles foi, aliás, autor dos primeiros tratados sistemáticos de ética de que se tem notícia. O que estava em questão no pensamento desses dois gigantes da filosofia grega era compreender como os ethoi (costumes) particulares – em alguns casos, literalmente bárbaros – poderiam ser elevados a um nível de generalidade compatível com o logos (a razão), entendido, desde cedo, como um procedimento de nossa psique responsável pela promoção e identificação de universalidades.
O legado grego à posterior civilização ocidental é, também no caso da ética, de valor inestimável. De fato, desde os primórdios do Cristianismo, mesmo com o advento de contextos históricos muito diferentes do da Grécia Clássica, o pensamento moral grego nunca deixou de ser considerado pelos grandes filósofos. No início da era cristã, por exemplo, Santo Agostinho envidou esforços para adaptar a herança grega – principalmente platônica – ao regime de interioridade psíquica trazido pela consolidação do Cristianismo. Em plena Idade Média, entre outros grandes pensadores, Santo Tomás de Aquino realizou tarefa semelhante, orientando-se, principalmente, pelo pensamento de Aristóteles.
O advento da Idade Moderna, com as enormes transformações econômicas, artísticas, religiosas e científicas, trouxe à filosofia da época questões também aparentadas com a mesma indagação grega sobre a necessidade de elevar os usos e costumes humanos a uma espécie de denominador comum, que seria o patamar da racionalidade. Acreditava-se à época – de modo tão exagerado quanto propriamente inviável – que a universalidade recém-conquistada no plano da ciência natural, com a física mecanicista de Galileu, Copérnico e Kepler, entre outros, seria passível de ser transposta para o âmbito das ações humanas, i.e., para o domínio da própria ética.
Dentro desse espírito, estava o projeto de Descartes da mathesis universalis (matemática universal, aplicável, também, à moral humana) e os esforços de Leibniz para o estabelecimento de um calculus racionator, i.e., um infalível método de raciocínio que, entre outras coisas, acabaria com os dissensos dos sábios em matéria de metafísica e moral.
Devemos a Immanuel Kant a limpeza de todo esse terreno de confusões entre âmbitos que se deixam resolver matematicamente, como a física, e os que são da ordem da reflexão, não se deixando, de modo algum, quantificar, embora exijam um elevado nível de racionalidade para sua abordagem. Segundo Kant, a racionalidade de tipo matemático é adequada à compreensão apenas do mundo natural e o mundo humano – inclusive todo o campo de ação ética – encerra em si um tipo próprio de racionalidade, em que ressalta a autonomia dos sujeitos – daí, um grau de imponderabilidade que inviabiliza a matematização.
Essa distinção abriu um novo campo de reflexão para os valores, i.e., os bens imateriais da humanidade, tais como o seu potencial ético e o patrimônio cultural. A idéia kantiana de autonomia – no fundo, uma espécie de radicalização da exigência grega de submeter os costumes à razão – tornou-se um dos principais motores da reflexão ética na filosofia pós-kantiana, mesmo que as diversas correntes de pensamento tenham divergido sobre a natureza e o alcance dessa autonomia.
Do ponto de vista da reflexão ética, esse é o cenário que antecedeu o surgimento, no início do século XX, dos mass media nos países mais industrializados. A invenção do cinematógrafo, nas últimas décadas do século XIX, e do rádio, logo no início do seguinte, coincide com o advento de sociedades de massa, em que surge concomitantemente a necessidade de controles sociais mais acurados por parte dos detentores do poder. Fosse pela simples necessidade de manter a ordem pública no sentido mais imediato, de coibir roubos ou assassinatos, ou para a manutenção do regime capitalista super-industrializado, que passava, à época, de um modelo liberal, concorrencial, para outro de tipo “monopolista” (ou, mais apropriadamente, oligopolista), os novos meios de comunicação foram imediatamente postos a serviço do status quo e, muito rapidamente, revelaram-se como meios muito eficazes de difusão ideológica.
A expressão “indústria cultural”, cunhado por Max Horkheimer e Theodor Adorno na década de 1940, designa esse “sistema”, formado inicialmente pelo cinema e pelo rádio – aos quais se juntaram, posteriormente, a televisão, o vídeo e os recursos de computação multimídia e de rede –, que tem como objetivo último padronizar o comportamento das pessoas, de modo a impedir “surpresas” na condução de uma economia progressivamente “globalizada” e de um modelo de política em que a concessão do direito de voto aos cidadãos pode pôr em risco a manutenção do sistema capitalista.
Desse modo, nem é preciso dizer que a primeira coisa que a indústria cultural sacrifica é a liberdade dos indivíduos num sentido mais substancial – e não apenas no de escolher entre a mercadoria A ou B –, i.e., de sua autonomia como potenciais sujeitos responsáveis por suas ações morais. Diante disso, ainda que os mass media, ocasionalmente, dêem alguma contribuição para “moralizar” a vida pública, não se pode dizer que eles sejam – ou tenham sido – responsáveis, no Brasil, pela introdução da “coisa” ética. Limitaram-se apenas à reintrodução da palavra correspondente.
Durante muito tempo a própria palavra “ética” sequer fazia parte do vocabulário do português falado no Brasil, possivelmente em virtude de a “coisa” que lhe correspondia estar há muito em desuso entre nós. Coube aos meios de comunicação de massa recolocar o termo na ordem do dia, principalmente após os escândalos de corrupção que levaram ao impeachment de Fernando Collor de Melo e que desde então, vêm atingindo altos representantes do Estado brasileiro, sejam do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. O fato de os meios de comunicação terem sido responsáveis pela reintrodução da palavra “ética” no português corrente leva a perguntar se há alguma afinidade, também, da “coisa” ética – e não apenas da palavra – com os mass media e, se houver, que tipo de relacionamento é esse.
Um caminho possível para esse questionamento é começar pela etimologia da palavra “ética”. Ela vem do termo grego ethos, que significava, principalmente, uso, costume, hábito. O fato de a palavra ser grega indica, também, a origem histórica da ética como disciplina filosófica: desde os filósofos pré-socráticos – ainda no século VI a.C. –, havia indagações sobre o modo de ser humano que fosse mais de acordo com o logos, i.e., com a razão. Toda a maiêutica (“parto de idéias”) de Sócrates tem como objetivo atingir a clareza sobre esse acordo entre o ethos e o logos, entre o costume e a racionalidade.
Os dois filósofos que lhe sucederam, Platão e Aristóteles, responsáveis pelo chamado “período sistemático” da filosofia grega, têm suas obras repletas de reflexões sobre a natureza da virtude, da felicidade, do bem etc. Aristóteles foi, aliás, autor dos primeiros tratados sistemáticos de ética de que se tem notícia. O que estava em questão no pensamento desses dois gigantes da filosofia grega era compreender como os ethoi (costumes) particulares – em alguns casos, literalmente bárbaros – poderiam ser elevados a um nível de generalidade compatível com o logos (a razão), entendido, desde cedo, como um procedimento de nossa psique responsável pela promoção e identificação de universalidades.
O legado grego à posterior civilização ocidental é, também no caso da ética, de valor inestimável. De fato, desde os primórdios do Cristianismo, mesmo com o advento de contextos históricos muito diferentes do da Grécia Clássica, o pensamento moral grego nunca deixou de ser considerado pelos grandes filósofos. No início da era cristã, por exemplo, Santo Agostinho envidou esforços para adaptar a herança grega – principalmente platônica – ao regime de interioridade psíquica trazido pela consolidação do Cristianismo. Em plena Idade Média, entre outros grandes pensadores, Santo Tomás de Aquino realizou tarefa semelhante, orientando-se, principalmente, pelo pensamento de Aristóteles.
O advento da Idade Moderna, com as enormes transformações econômicas, artísticas, religiosas e científicas, trouxe à filosofia da época questões também aparentadas com a mesma indagação grega sobre a necessidade de elevar os usos e costumes humanos a uma espécie de denominador comum, que seria o patamar da racionalidade. Acreditava-se à época – de modo tão exagerado quanto propriamente inviável – que a universalidade recém-conquistada no plano da ciência natural, com a física mecanicista de Galileu, Copérnico e Kepler, entre outros, seria passível de ser transposta para o âmbito das ações humanas, i.e., para o domínio da própria ética.
Dentro desse espírito, estava o projeto de Descartes da mathesis universalis (matemática universal, aplicável, também, à moral humana) e os esforços de Leibniz para o estabelecimento de um calculus racionator, i.e., um infalível método de raciocínio que, entre outras coisas, acabaria com os dissensos dos sábios em matéria de metafísica e moral.
Devemos a Immanuel Kant a limpeza de todo esse terreno de confusões entre âmbitos que se deixam resolver matematicamente, como a física, e os que são da ordem da reflexão, não se deixando, de modo algum, quantificar, embora exijam um elevado nível de racionalidade para sua abordagem. Segundo Kant, a racionalidade de tipo matemático é adequada à compreensão apenas do mundo natural e o mundo humano – inclusive todo o campo de ação ética – encerra em si um tipo próprio de racionalidade, em que ressalta a autonomia dos sujeitos – daí, um grau de imponderabilidade que inviabiliza a matematização.
Essa distinção abriu um novo campo de reflexão para os valores, i.e., os bens imateriais da humanidade, tais como o seu potencial ético e o patrimônio cultural. A idéia kantiana de autonomia – no fundo, uma espécie de radicalização da exigência grega de submeter os costumes à razão – tornou-se um dos principais motores da reflexão ética na filosofia pós-kantiana, mesmo que as diversas correntes de pensamento tenham divergido sobre a natureza e o alcance dessa autonomia.
Do ponto de vista da reflexão ética, esse é o cenário que antecedeu o surgimento, no início do século XX, dos mass media nos países mais industrializados. A invenção do cinematógrafo, nas últimas décadas do século XIX, e do rádio, logo no início do seguinte, coincide com o advento de sociedades de massa, em que surge concomitantemente a necessidade de controles sociais mais acurados por parte dos detentores do poder. Fosse pela simples necessidade de manter a ordem pública no sentido mais imediato, de coibir roubos ou assassinatos, ou para a manutenção do regime capitalista super-industrializado, que passava, à época, de um modelo liberal, concorrencial, para outro de tipo “monopolista” (ou, mais apropriadamente, oligopolista), os novos meios de comunicação foram imediatamente postos a serviço do status quo e, muito rapidamente, revelaram-se como meios muito eficazes de difusão ideológica.
A expressão “indústria cultural”, cunhado por Max Horkheimer e Theodor Adorno na década de 1940, designa esse “sistema”, formado inicialmente pelo cinema e pelo rádio – aos quais se juntaram, posteriormente, a televisão, o vídeo e os recursos de computação multimídia e de rede –, que tem como objetivo último padronizar o comportamento das pessoas, de modo a impedir “surpresas” na condução de uma economia progressivamente “globalizada” e de um modelo de política em que a concessão do direito de voto aos cidadãos pode pôr em risco a manutenção do sistema capitalista.
Desse modo, nem é preciso dizer que a primeira coisa que a indústria cultural sacrifica é a liberdade dos indivíduos num sentido mais substancial – e não apenas no de escolher entre a mercadoria A ou B –, i.e., de sua autonomia como potenciais sujeitos responsáveis por suas ações morais. Diante disso, ainda que os mass media, ocasionalmente, dêem alguma contribuição para “moralizar” a vida pública, não se pode dizer que eles sejam – ou tenham sido – responsáveis, no Brasil, pela introdução da “coisa” ética. Limitaram-se apenas à reintrodução da palavra correspondente.
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