domingo, 21 de setembro de 2008

Para uma ética global


Na linha da tradição contratualista ocidental, que vê na base jurídica do direito a condição necessária para que os homens possam dirimir os seus conflitos e a partir daí alicerçarem os fundamentos da moralidade, da justiça e da coexistência pacífica, Michel Serres, ao apresentar-nos o seu “Contrato Natural”, vem, por um lado, legitimar essa base racional e jurídica para as relações de conflito entre os homens e, por outro lado, reconhecer a insuficiência do velho “contrato social” numa nova área de conflito, agora já não apenas dos homens entre si, mas de uma outra relação tragicamente conflituosa: a dos homens com a natureza ela mesma.
Logo no início da referida obra, o autor conta-nos duas histórias paradigmaticamente sugestivas deste trágico conflito entre o homem e a natureza; conflito do qual, infelizmente, ainda não lográmos assumir plena consciência, embrenhados que estamos no nosso dia-a-dia comezinho e rotineiro.
Na primeira, descrevendo um quadro de Goya, fala-nos de dois inimigos, que, atolados até aos joelhos, brandem os seus varapaus numa luta encarniçada sobre areias movediças. A cada movimento da luta, vão sendo gradualmente engolidos numa lama viscosa. Enquanto isso, num outro plano do quadro, exterior à luta, perspectiva-nos a nós como espectadores, entretidos e entusiasmados pela paixão da luta, a participarmos nela, lançando as nossas apostas, como se de um banal jogo se tratasse.
Na segunda história, citando o canto XXI da “Ilíada”, o autor descreve uma estranha e louca batalha na qual Aquiles luta contra a enchente de um rio. Nessa luta, à medida que o herói lança sobre as águas os cadáveres dos adversários vencidos, o nível das águas vai subindo de tal modo que o riacho, já trasbordante, o vai cobrindo até aos ombros, correndo o risco de os submergir.
A moral destas histórias é a seguinte: o pântano de Goya, tal como o rio de Aquiles, outrora locais, tornaram-se agora globais: já não são o pântano ou o riozinho da nossa aldeia, de que falava Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos, mas o próprio planeta Terra. Tal como os lutadores do pântano de Goya ou do rio de Aquiles, é agora a Terra quem se arrisca a ser engolida e, com ela, todos nós também, meros espectadores passivos e entretidos, como no quadro de Goya, na diversão dos nossos jogos de apostas.
Não interessa analisar aqui o posicionamento do autor no contexto das novas éticas contemporâneas. Mas perante um incontornável quadro actual de globalização da acção humana, ainda que localmente situada, não podemos deixar de concordar com ele, quando diz que “devemos decidir a paz entre nós para salvaguardar o mundo e a paz com o mundo para nos salvaguardarmos a nós próprios” [1].
Afinal, “Tudo está ligado”, como dizia o grande chefe índio, Seatle de seu nome, em carta enviada ao presidente dos EUA, corria o ano de 1854. E sentenciava nela, com a autoridade de uma sabedoria ancestral muito mais profunda do que a profundidade do nosso saber racionalista e tecno-científico: “tudo o que acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra (...), e aquilo que ele [o homem] fizer à rede da vida, ele o faz a si próprio”. Porque, dizia ainda aquele a quem outrora designávamos e talvez alguns designem ainda hoje de indígena ou selvagem, “Se os homens cospem no solo, cospem em si próprios” [2].
Passado este preâmbulo, confesso que sempre me interroguei se a globalização é um bem ou um mal em si mesma. Mas a questão não passa, contudo, de mero exercício retórico, uma vez que enferma de uma falácia intrínseca, pois o ‘em si’ é uma categoria filosófica de cariz ontológico-metafísico que nos remete para uma ideia de absoluto e a realidade mundana em que vivemos é tudo menos absoluta, já que a relatividade é a grande constante que preside à natureza das coisas, da vida e do mundo que temos.
Por isso, há que afirmar desde já que a globalização não pode ser vista como um bem ou um mal em si mesma, como algumas interpretações apressadas por condicionamentos ideológicos de diversa ordem muitos vezes tendem a considerar. Podemos dizer, isso sim, que há aspectos bons ou maus, positivos ou negativos, daquilo a que, genérica e por vezes ambiguamente, chamamos de globalização. Por exemplo, a globalização do mal não pode nunca ser encarada como positiva e, portanto, um bem; do mesmo modo que a globalização do bem não pode nunca ser considerada negativamente e, portanto um mal, para qualquer perspectiva ética minimamente equilibrada. Não esqueço, no entanto, que esta consideração já pressupõe necessariamente uma apreciação valorativa da minha parte. Mas não estará toda a realidade condicionada ao juízo valorativo humano? Não estará na raiz do ético a apreciação e/ou a justificação do comportamento humano perante os seus congéneres?
O que pretendo dizer com isto? Simplesmente que, sendo a globalização uma categoria filosófica, sociológica, política, ou outra, pela qual não podemos deixar de ver o mundo dos nossos dias sem ser à escala de uma chamada ‘aldeia global’, em função das multiproximidades e das multidependências mediáticas, comunicacionais, políticas, económicas, ambientais etc., é imperativo submetê-la a uma condicionante ético-valorativa. O mesmo é dizer que é imperativo falar de uma ética da globalização, como muito bem avançou Peter Singer como subtítulo para a sua obra mais recente ‘Um Só Mundo’[3]. Foi orientado por esta perspectiva de um caminho para uma ética global, em razão de vivermos num só mundo, que é de todos em conjunto e de ninguém em particular, que organizei este meu exercício discursivo.
Na verdade, é o homem quem tem o poder de fazer da globalização um bem ou um mal, em função do sentido ou razão de ser que colocar na sua ‘praxis’ quotidiana. E esse sentido ou razão de ser, como determinante axiológica ou valorativa da acção, é necessariamente a mais radical e imperativa condicionante que a globalização deve assumir. Quero com isto dizer que só faz sentido falar da globalização como um bem ou um mal em função dos valores que humanamente orientam a nossa acção quotidiana, quer esta seja local ou globalmente considerada. Na realidade, já não podemos esquecer que numa sociedade cada vez mais globalizada como a nossa, a acção, ainda que localmente situada, tem cada vez mais implicações à escala global, no sentido em que o lixo no meu quintal, precisamente por ser lixo e apesar de estar no meu quintal, mesmo que não me incomode a mim, não pode deixar de incomodar o meu vizinho. E isto, obviamente, exige de mim um conjunto de deveres éticos perante os direitos desse meu vizinho. Portanto, é duma ética da responsabilidade colectiva e partilhada que é urgente falar agora; não uma ética particularista, assente na variabilidade dos interesses individuais, grupais ou nacionais. Precisa-se, pois, de uma ética global, necessariamente supra-individual, supra-grupal ou supra-nacional, preocupada essencialmente com o que, paradoxalmente, designaria de um interesse egoisticamente desinteressado, ou seja, de uma ética com a preocupação da preservação de todos os equilíbrios vitais do nosso mundo, sejam eles orgânicos, sociais, culturais ou outros. No fundo, uma ética que possa vir a ser legitimada e salvaguardada no plano jurídico pelo direito internacional, sob a égide de uma organização supranacional como é ainda hoje a ONU, instância sem a qual, queiramos ou não, num mundo globalizado, não há outro meio de coexistência pacífica quer dos homens entre si quer também com a própria natureza, como premonitoriamente já antevira Kant no séc. XVIII, num pequeno opúsculo intitulado “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita” [4].
Mas surge legítima a questão: de que valores falamos quando falamos de valores perante a globalização? Após os pessimismos e niilismos de há mais de um século a esta parte, haverá ainda uma efectiva crise de valores como vulgarmente se diz, uma crise exponenciada pelo chamado relativismo axiológico dos nossos dias ou, ao contrário, é possível ainda perspectivar e lutar por um conjunto de valores objectiváveis e mesmo universalizáveis, como condição de sentido para a existência do homem no mundo que temos? Será todo o valor, por diverso que seja, igualmente legítimo como determinante da acção ou será necessário pensar a partir de uma escala axiológica, no sentido em que uns valores serão mais importantes do que outros e, por isso mesmo, deverão ser condicionantes destes? E deverão tais valores, assim considerados pela nossa razão como importantes e decisivos para a salvaguarda relacional do nosso mundo humano e natural, ser deixados ao arbítrio ético das vontades ou consciências individuais de cada um ou, em vez disso, deverão esses valores ser legitimados sob a forma jurídico-contratual dum direito, pensado não já apenas como internacional, porque, em teoria, exclusor de alguns, mas dum direito que, forçando o conceito, teria de designar de global ou para a globalização e ao qual todos ficariam subordinados? Mas como conjugar esta obrigação legal com as lógicas dos poderes nacionais ou multinacionais?

É óbvio que me inclino para as segundas hipóteses das questões disjuntivas que formulei, ou seja, se à ideia de globalização presidir qualquer interesse de natureza particularista ou egoísta, expressa nas lógicas de poder referidas, e não uma determinante ética global, virada para o interesse comum, humanista, filantrópico e, no limite, cósmico-holista, no sentido de uma preocupação com o equilíbrio da natureza no seu todo multi-relaccional, trans-individual e trans-especista, como pensar na bondade de uma globalização, por exemplo, apenas económica ou política? De resto, se todos os valores são relativos, o bem e o mal, a pobreza e a riqueza do desperdício, a tirania e a liberdade, a defesa dos ecossistemas e os desequilíbrios ambientais estão igualmente legitimados. Pergunto ainda, serão os valores particularistas ou egoístas, subjacentes à ideia de estado-nação e que têm até hoje presidido às relações internacionais entre os povos, capazes de salvaguardarem o bem comum num mundo globalizado e supranacional? Como poderão os líderes políticos dos estados-nação responder à globalização da fome, da miséria económica e social, dos desequilíbrios ambientais ou, como exemplo último dum mal global, do terrorismo internacional, quando a sua preocupação maior é ainda a da salvaguarda do interesse nacional, como ficou claramente expresso com a recusa dos EUA em subscrever o Protocolo de Quioto ou em apoiar a implementação do domínio da lei internacional através da criação de um Tribunal Penal Internacional? Com que legitimidade é que alguém, indivíduo ou nação, por mais poderosos que sejam, se poderão subtrair a uma responsabilidade comum, quando a sua acção é também parte do problema de todos? Afinal, que mundo edificaremos nós sobre o arbítrio dos poderes, numa realidade colectiva que nos torna incontornavelmente interdependentes?

A verdade é que posturas políticas desta natureza implicam concepções éticas parciais e egoístas, que já não se coadunam com a dimensão global do mundo de hoje. E se alguma virtude é possível encontrar nos trágicos acontecimentos de 11 de Setembro no World Trade Center em Nova York ou no recente 11 de Março em Madrid, ela reside no facto de nos demonstrar que a globalização do mal já não pode ser combatida sem uma cooperação trans-nacional. Do mesmo modo, as emissões de dióxido de carbono dos escapes dos automóveis, que irão provocar alterações climatéricas com repercussões económicas, sociais, ambientais, de saúde pública, etc., também nos mostram que afinal somos um só mundo, como demonstra Peter Singer na obra citada, um mundo globalizado, e que só a cooperação de todos, orientada por uma perspectiva ética diferente da até aqui existente, nos permitirá alterar o actual estado de coisas, no sentido da edificação de uma ‘casa comum’ (um dos sentidos do termo grego ‘êthos’) moralmente mais equilibrada e cosmicamente mais justa.

Reparem que a grande diferença entre os primeiros exemplos que dei do mal global, chamado terrorismo internacional, relativamente ao mal global ambiental, resultante das alterações climatéricas provocadas pelas emissões de gases tóxicos, reside unicamente no choque mediático provocado em nós pelo visionamento emotivo e em directo da morte trágica das vítimas urbanas do terrorismo. Não obstante esta, há uma diferença maior e, portanto, igualmente terrível: é que as vítimas a prazo do segundo mal global referido serão incomparavelmente mais numerosas do que as dum terrorismo internacional, embora de menor atenção mediática e de menor preocupação colectiva ou de consciência pública. E este é ainda um outro problema, que mereceria outra abordagem analítica particular.

As múltiplas perspectivas éticas que se perfilam no debate filosófico actual, desde as tradicionais éticas antropocêntricas às éticas mais radicais e até perigosamente fundamentalistas, como as genericamente designadas por “Deep Ecology” (Ecologia Profunda), todas elas nos chamam a atenção para o problema crucial dos nossos dias: a tragédia da possível extinção da vida no planeta Terra, um facto terrível de que é urgente tomar consciência colectiva. Nunca como nos nossos dias o homem teve em suas mãos um tão grande poder. E se com o anúncio da “Morte de Deus”, Nietzsche constatava este tão relevante acontecimento histórico-civilacional do poder humano, ao mesmo tempo questionava-se também para onde caminharíamos nós agora libertos da tutela divina. Não correríamos agora o risco de estarmos incessantemente a cair? De sermos como fantasmas errantes através de um vazio infinito? Não teria sido a grandeza deste acto demasiado grande para nós? Estaríamos nós à altura da grandiosidade deste acto [5]? O problema que se coloca hoje é se a morte de Deus não traz consigo também, irremediavelmente ligada, a morte do próprio homem e da vida no planeta Terra.
Não pretendo sequer colocar a questão no plano religioso tradicional, nem sequer indagar se o ético vem obscurecer o sentido da transcendência do divino. O que me parece urgente é recolocar a questão no plano de uma nova ética, sucedânea de uma nova sensibilidade e de uma nova espiritualidade ecológica, capaz de não mais olhar para o homem como dono e senhor da natureza, em função do qual esta teria o seu destino sacrificial fatalmente traçado desde as cosmogonias míticas da antiguidade, em especial dos Génesis[6]. Infelizmente, o erro histórico desta concepção de uma natureza à parte do homem tem sido a causa da agressão do homem à natureza, cujos desequilíbrios daí resultantes, a manterem-se no actual ritmo, tornarão a vida na Terra insustentável a prazo.

Em jeito de conclusão diria que a ética global de que falo aqui não pode deixar de considerar como princípio maior da acção o respeito do homem, não já apenas e só para com o seu congénere humano, mas também para com a própria natureza no seu todo, quer fora, quer dentro do homem, que é natureza também. E se hoje discutimos aqui como tema central deste seminário “a globalização e os direitos humanos”, não posso deixar de afirmar a exigência de uma co-extenção desses direitos para além do próprio homem, sob risco de ter de considerar como redutor o objecto jurídico pressuposto na temática do seminário.

Com efeito, no plano ético a discussão faz-se hoje em torno de outros seres de consideração e respeito moral para além do próprio homem, como os animais, os ecossistemas, a paisagem ou a natureza no seu todo, os quais, necessariamente, terão de ganhar expressão jurídica no plano do direito. E neste caso, a nossa responsabilidade moral será tanto maior quanto mais frágeis estiveram estes seres face à acção humana e quanto mais globalizada for essa mesma acção.

Finalmente, neste espaço de reflexão conjunta, entre pessoas que perfilham uma base espiritual comum, assente num conjunto de princípios que procuram a salvaguarda da coexistência pacífica, da tolerância, do respeito e da fraternidade universais entre os povos, afirmo que, nesta era global e na perspectiva daquilo a que Peter Singer designou por “comunidade ética global” [7], não poderemos doravante deixar de assumir e de estender estes princípios também a todos os outros seres de consideração moral, sob o risco de, sem estes, nem o mundo nem o próprio homem poderem, não só coexistir, como, no limite, sobreviverem [Parágrafo alterado].
Termino, pois, citando ainda o velho chefe índio. E com ele formularia um voto de esperança ecologicamente global e fraterno: “por fim, talvez sejamos irmãos”[8]!

Acácio Bárbara
(Apresentado no Seminário “A Globalização e os Direitos Humanos”,
Monte Real, 3 Abril de 2004)


Bibliografia:
BÍBLIA SAGRADA, “Génesis”, I, 26-28; IX, 2.
KANT, Immanuel, “A IDEIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL COM PROPÓSITO COSMOPOLITA”, in A Paz Perpétua e outros opúsculos, Trad. de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1988.
“POEMA ECOLÓGICO”, Trad. de Júlio Roberto, Lisboa, Edições ITAU, s/d.
NIETZSCHE, Friedrich, Gaia Ciência, § 125.
SERRES, Michel, O Contrato Natural, Trad. de Serafim Ferreira, Lisboa, Instituto Piaget, 1994.
SINGER, Peter, Um só mundo: a ética da globalização, Trad. de Maria de Fátima St. Aubin, Lisboa, Gradiva, 2004.
[1] SERRES, Michel, O Contrato Natural, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p. 46.
[2] “POEMA ECOLÓGICO”, Trad. De Júlio Roberto, Lisboa, Edições ITAU, s/d.
[3] Cf. SINGER, Peter, Um só mundo: a ética da globalização, Lisboa, Gradiva, 2004.
[4] Cf. KANT, Immanuel, “A IDEIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL COM PROPÓSITO COSMOPOLITA”, in A Paz Perpétua e outros opúsculos, Trad. de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1988, pp. 21-37.
[5] Cf. NIETZSCHE, Friedrich, Gaia Ciência, § 125.
[6] Cf. BÍBLIA SAGRADA, “Génesis”, I, 26-28; IX, 2.
[7] SINGER, Peter, op. cit., p. 205.
[8] “POEMA ECOLÓGICO”, Idem.


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