Crédito: João Luis Xavier |
Entre as 17 histórias de vida contadas por João Vicente Silva Souza na sua brilhante tese de doutorado, "Alunos de escola pública na Universidade Federal do Rio Grande do Sul: portas entreabertas", duas são emocionantes: as histórias de Paulo e Maria de Lourdes. Paulo é apresentado assim: "Único negro a ingressar no curso de Medicina da Ufrgs em 2003 (3.711 candidatos, 140 vagas, 26,51 candidatos por vaga)". Essa era a situação antes das cotas. Um cínico certamente tiraria a seguinte conclusão: viram, um negro entrou sem precisar de cotas. Tem um especialista em investimentos que pensa o seguinte: "se o sujeito não tem condições de entrar na Medicina, por ser pobre, que faça um curso técnico e poderá ser um excelente mecânico ou encanador". Hummm...
O mais incrível é que Paulo não gostava de estudar: "Eu nunca gostei de escola, eu não gosto de estudar, detesto estudar. Nunca gostei de estudar". Por uma razão bem simples: não queria ser humilhado: "Às vezes o cobrador não deixava, não podia pegar um ônibus, tinha que esperar outro, chegava atrasado". Sem contar que não tinha dinheiro para material escolar. Nada de novo no front. Ou tudo de novo no cotidiano de milhões de brasileiros. Paulo "atravessou um oceano" e realizou o impossível. Só não podia derrubar sozinho as estatísticas, pois essas são o resultado de estruturas profundas e frias. Não se alteram por um caso pessoal.
Maria de Lourdes, negra, 32 anos, moradora do Morro Santana, entrou em Artes Visuais, na Ufrgs, em 2004. O seu tataravô foi lutar na Guerra do Paraguai em busca da alforria. As mulheres da família continuam lutando até hoje por emancipação. Maria de Lourdes já passou fome. Sonhava em estudar Medicina. A mãe, "realista", queria que ela fizesse um curso técnico de decoração. Em 1994, quando uma liminar da Justiça permitiu que candidatos se inscrevessem sem pagar qualquer taxa, ela aproveitou a oportunidade e entrou na Ufrgs em Administração. Descobriu colegas elitizados, não tinha dinheiro para frequentar o bar da universidade e levou cinco semestres para descobrir a existência do restaurante universitário. Antes disso, conta João Vicente, ela buscava alguma saída: "Entre um turno e outro das suas aulas, distraía a sua fome dentro das bibliotecas da Universidade".
Trancou a matrícula no sétimo semestre e foi trabalhar numa petshop. João Vicente sintetiza: "Havia nesta instituição, segundo Maria de Lourdes, alguns mecanismos e hábitos que faziam com que as origens, diferenças e necessidades das pessoas não se sobressaíssem diante de um certo ''purismo meritocrático''. Maria de Lourdes não sofreu e largou a Universidade somente por ser pobre e negra. Largou, principalmente, porque foi desdenhada". Imaginar que a universidade pública deva ser reservada aos "melhores", definidos numa competição cuja única igualdade entre todos os concorrentes é o fato de responderem às mesmas questões na mesma hora, é uma das maiores maldades já inventadas. Essa meritocracia é uma sacanagem em nome de uma pretensa objetividade e universalidade. O resto é a vida real.
JUREMIR MACHADO DA SILVA > correio@correiodopovo.com.br
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