sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A tristeza do Jeca


"O caboclo é um funesto parasita da terra, inadaptável à civilização. O caboclo é uma quantidade negativa." Essas afirmações estão num artigo chamado "Velha Praga", que Monteiro Lobato publicou em 1914 no jornal O Estado de São Paulo. Fazendeiro em Taubaté, no Vale do Paraíba, Lobato estava inconformado com a preguiça e vagabundagem dos caboclos que empregava. Irritado, escreveu o tal artigo demolidor.

Veja este trecho:

"Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando... vai ele refulgindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão (...) de modo a sempre se conservar fronteiriço, mudo e sorna. (...) o caboclo é uma quantidade negativa."

Imagine alguém escrevendo um artigo como esse nos dias de hoje, em pleno Brasil do Pobrismo? Seria imolado em praça pública, riscado do mapa, humilhado e ridicularizado, não é?

Pois bem. No livro que Lobato escreveu em seguida, Urupês, surgiram as raízes de um personagem histórico: Jeca Tatu, o caboclo feio, preguiçoso e vagabundo, que subverteu a imagem do bom caboclo brasileiro. Foi um tapa na cara do orgulho nacional. Até Ruy Barbosa, candidato a presidente, usou a imagem do caboclo de Lobato para tratar do descaso dos políticos com a população do campo. E na discussão que se seguiu, Monteiro Lobato tomou contato com o relatório "Saneamento no Brasil", do sanitarista Belisário Pena. Ali estavam as provas de que o problema do caboclo não era a preguiça, mas a saúde. Sem saneamento básico a população do campo estava à mercê de doenças, entre elas a Ancilostomíase, o popular "amarelão", causada por um verme parasita intestinal. Naquela época a maioria da população do campo fazia suas necessidades fisiológicas atrás de moitas. Carregados pelas fezes, os ovos do parasita liberavam no solo as larvas que entravam pela sola dos pés (naquela época 90% da população do campo andava descalça), alojando-se no corpo das vítimas e consumindo os nutrientes. Os caboclos estavam doentes, por isso eram feios e indolentes.

Percebendo a injustiça que cometera, Monteiro Lobato redime-se entrando de corpo e alma em ações de educação e criando o personagem Jeca Tatuzinho e o Almanaque do Biotônico Fontoura, que ensinou a milhões de pessoas as normas básicas de higiene. E na quarta edição de Urupês, ele escreveu:

"Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças. Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharada cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não. Assim, é com piedade infinita que te encara hoje o ignorantão que outrora só via em ti mamparra e ruindade.".

Bem, conto essa história em detalhes no podcast TRISTEZA DO JECA que você encontra em www.lucianopires.com.br/cafebrasil/podcast .

E cabe aqui um comentário. Neste mundo das patrulhas do "politicamente correto", você conhece alguma personalidade que tem a coragem e humildade de vir a público e dizer "errei", mudar de idéia e redimir-se do erro? Mais: sem ser humilhado e destruído pelos adversários ideológicos e pela mídia sedenta de sangue?

É, meu caro. O mundo mudou.

Luciano Pires
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Um comentário:

  1. Muito boa esta postagem...gostei...tirei algumas informações p/ trabalhar com alunos...estão lendo o livro...abç!!!

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