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domingo, 16 de novembro de 2008

Um pensador da ética

Por Renato Janine Ribeiro
Num dia de dezembro de 1513, um homem escreve a um amigo. Está no campo, banido. Foi preso e torturado. Mas não se queixa. Conta que passa o dia com os camponeses, gritando, jogando. À noite, porém, troca de roupa. Veste os melhores trajes. Lê os autores antigos e, espanto!, dialoga com eles. Ouve suas opiniões, suas idéias. (Essa passagem é sempre citada, quando se quer explicar a Renascença). Quase no final, informa que gastou algumas semanas escrevendo um livrinho, De principatibus (Dos principados), "onde me aprofundo tanto quanto posso nas cogitações desse tema...".
Gastou nisso umas poucas semanas, que definirão para a posteridade o seu nome – Nicolau Maquiavel ou, em italiano, Niccolò Machiavelli. A elas Maquiavel deverá a glória: seu nome gerará um adjetivo que todos conhecem. De uns trinta grandes filósofos, apenas dois – ele e Platão – chegaram a tanto. Mesmo quem nunca os leu tem noção do que é amor platônico ou ação maquiavélica. Não importa que nós, professores de filosofia, provemos que os adjetivos convêm mal aos dois filósofos. Eles pegaram. O renome de Maquiavel é maior que ele próprio.
Mas é um mau renome, uma má fama, infâmia. O Príncipe foi lido, bem cedo, como um livro de conselhos aos governantes, para quem os fins justificariam os meios (essa frase, aliás, não é de Maquiavel). Ele defenderia o despotismo e a amoralidade dos príncipes. Há aqui, porém, um problema. Maquiavel escreveu O Príncipe de um jato só, enquanto se dedicou vários anos a outro projeto – os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, um longo comentário ao historiador de Roma antiga.
Ora, os Discursos são uma obra republicana. E, se Maquiavel foi torturado a mando dos Médici, que acabavam de retomar Florença, isso se deveu a ter sido ele um dos líderes da República florentina. O Maquiavel mais extenso é republicano – e sobre ele temos um livro notável de Newton Bignotto, Maquiavel republicano (1991). Mas talvez o autor d’O Príncipe seja o Maquiavel mais intenso: essas semanas no campo emancipam a política da moral cristã.
Daí, questões sérias. Rousseau, dois séculos e meio depois d’O Príncipe (isto é, a meio caminho entre Maquiavel e nós), sugere: tudo seria uma enorme paródia. Republicano da gema, nosso autor teria contado – como a sério – todo o mal que os reis fazem, para fazer-nos odiá-los. Há um enigma Maquiavel. Ainda maior, porque O Príncipe é talvez a obra filosófica que parece mais fácil de ler. Nenhuma dificuldade para entender cada linha ou página. Só para saber o que, afinal, ele quis dizer.
Maquiavel começa distinguindo repúblicas e monarquias: falará delas. Dos reinos, uns são antigos e outros novos: só tratará dos novos. E, destes, uns foram conquistados por armas próprias e outros, com armas alheias e graças à fortuna (no sentido de sorte) – interessam-lhe estes. Como um novo governante, que não se beneficia da opinião favorável que a idade dá a um regime, pode conseguir ser aceito por seu povo? eis a questão. Isto é: como passar da força bruta ou da violência ao poder, que depende do consentimento dos dominados.
E com isso Maquiavel é um dos raros pensadores da política a pensar, não só o exercício, mas a tomada, do poder – não a continuidade, mas a novidade. Não é fortuito que o marxista italiano Antonio Gramsci tenha escrito sobre ele: Maquiavel pode ser revolucionário.
Todo governante procura "conservar o [seu] estado". Quer dizer seu estado de governante, a condição de quem manda. Mas daí brota outro sentido, que surge com Maquiavel: o Estado que o príncipe governa. E como o conservará? Não há receituário. Aqui está o erro de quem lê, n’O Príncipe, regras a aplicar. Pois o que ele destaca na política (ou aquilo a que seus leitores recentes se mostram mais atentos) é justamente o que exige argúcia e invenção!
Diz ele que deseja escrever coisa que preste, útil; por isso não tratará do Estado como deve ser mas como é; nada melhor, para que o governante planeje bem suas ações. A ação deliberada, planejada, eficaz se dá no plano do que ele chama de virtù e que nada tem a ver com a virtude, no sentido cristão ou moral. Mas ninguém realiza todos os seus planos. Metade dos resultados de nossas ações, diz, se deve à virtù, metade à fortuna.
Uma forte convicção medieval era que o governante deveria seguir a moral cristã. Era essa a chave do bem governar. Mas Maquiavel mostra, usando a história e a experiência, que sempre venceu quem pensou mais no êxito do que na moral ou na salvação da alma. Nem por isso devemos ser cruéis de propósito: ele recomenda praticar o bem sempre que possível, o mal quando necessário.
Só que o governante não tem garantia de sucesso. Este sempre é incerto. Um homem privado pode, se respeitar leis e regras, vencer na vida; vive no quadro de um sistema que premia e pune; mas um governante, que não tem rede a protegê-lo, não tem segurança disso.
Lembremos o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele falou muito na ética da responsabilidade, conceito que Max Weber cunhou para dar conta do que Maquiavel iniciara. Teríamos por um lado a ética de princípios ou valores, e por outro a que leva em conta os efeitos previsíveis da ação. O homem privado poderia dar-se ao luxo de seguir os princípios, em sua pureza.
Já o homem público precisa pautar-se pela ética da responsabilidade, insistia FHC, citando Weber (teve a cautela de não citar Maquiavel). Esse foi um ponto de debate no governo passado, com parte da oposição atacando o presidente em nome de um discurso moral. Subentendia-se que a ética da responsabilidade fosse uma ética com desconto, uma ética enfraquecida, até mesmo uma não-ética. Mas ela não é isso.
Se o subtexto de FHC era Maquiavel, não era amoral. A melhor bibliografia atual repudia a imagem de um Maquiavel anti-ético. Destaquemos o livro de Claude Lefort, comentado adiante, que precisaria ser traduzido. Ou o livro utilíssimo de Quentin Skinner, Maquiavel, infelizmente esgotado (Brasiliense), ou ainda duas passagens de seu Fundações do pensamento político moderno (Companhia das Letras).
Dois brilhantes textos mais curtos valorizam a ética de Maquiavel. Isaiah Berlin, em "A originalidade de Maquiavel" (in Estudos sobre a humanidade, Companhia das Letras), diz que na obra dele não se opõem a ética e uma política sem ética – mas duas éticas. Uma é cristã, preza a salvação da alma. Outra – a do Príncipe – é pagã e valoriza a pólis, a cidade, este mundo.
Mas o grande pequeno artigo é a "Nota sobre Maquiavel", de Merleau-Ponty (in Signos, Martins Fontes). Diz ele que uma bondade "incapaz de dureza" (a ética dos princípios) não é verdadeira, nem sequer para o indivíduo – e que O Príncipe encarna "algumas das condições de todo humanismo sério" e, mais que isso, "a regra de uma verdadeira moral". Esta exige levarmos em conta as conseqüências prováveis de nossos atos. De nada vale ficar nas boas intenções. Maquiavel terá lançado as bases da ética de nossos tempos. Merleau-Ponty assim efetua uma enorme reviravolta, que faz o filósofo mais mal falado de todos – e cujo prenome gerou em inglês um apelido para o diabo, "Old Nick" – se tornar um possível grande pensador ético.
Talvez isto signifique o seguinte: na Idade Média, o quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto do súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava isso para fazer um bom rei ou um fiel cristão. Maquiavel mostra que o príncipe não está mais submetido – nem protegido – por esse quadro. É essa insegurança que lhe dá liberdade. Ninguém é livre sem ansiedade. Mas hoje temos um mundo em que também se desfizeram os quadros de referência que protegiam – e prendiam – os cidadãos. Não só o príncipe, mas todos nós.
Se, na reflexão de FHC, a vida pública é diferente da vida privada, o que vemos hoje – e disso se aperceberam os comentadores recentes de Maquiavel – é que a vida privada tomou cores que eram da vida pública. O ex-presidente também errou, ao separá-las. Pois a vida privada igualmente se tornou insegura: casamentos, empregos e até profissões terminam.
Essa insegurança é maior, mais duradoura e mais inquietante do que a gerada pelo temor do assalto: nenhuma polícia pode superá-la. Por isso, não é verdade que o homem privado possa ignorar a lição d’O Príncipe. Hoje é ele quem mais tem a aprender lendo esse poderoso livro. Porque cada um de nós está, em certa medida, na condição do príncipe de Maquiavel: com mais liberdade do que nunca antes, mas também mais inseguro.
Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na USP e curador deste dossiê, é autor de A sociedade contra o social (Companhia das Letras), Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu tempo (Ed. UFMG) e de A universidade e a vida atual (Campus), entre outras obras.
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As duas éticas ou A ação possível


A modernidade começa com uma desilusão: quando se percebe que do bem não decorre o bem. Maquiavel faz essa terrível constatação – aquilo que, no plano privado ou pessoal ou religioso1 redundar em catástrofe no campo da política. Alguns dizem que, com isso, o pensador italiano terá separado a política e a ética, proclamando a primeira como imoral ou pelo menos amoral. Não é verdade. Maquiavel mostra-se exigente com o seu príncipe, ou seja, com aquele que governa os demais homens: nada mais errado do que imaginar as regras que presidem a sua ação como efetuando uma desqualificação daquela que seria a verdadeira ética, ou seja, a pessoal ou religiosa. Ninguém compreenderá nada de Maquiavel, ou da política moderna, se não tiver isso bem em mente. Podemos, isso sim, falar em duas éticas, como faz Max Weber, nisso claramente tributário do florentino.
O tema das duas éticas, ou melhor, o da segunda ética, da que o estadista pratica, tornou-se estes últimos anos um dos tópicos centrais da fala de um presidente brasileiro formado nas ciências sociais. Ele próprio um cientista político2, parte significativa de sua fala consistiu em atacar a ingenuidade daqueles que pensam que o líder político deveria pautar sua ação por regras morais. Não se pode dizer que o seu discurso, nesse campo, seja original: não pretende sê-lo. Ele e seus partidários retomam, basicamente, o que Weber disse. Isso em nada reduz a importância de seu discurso. Ao político, não cabe tanto a originalidade, mas o endosso e a execução. Enquanto no mundo das idéias a novidade, a originalidade contam enormemente, no da ação o que vale mesmo é pô-las em prática. O pensador escreve, o político assina. Os próprios intelectuais têm consciência disso, quando se cansam de apenas especular e procuram um príncipe – um tirano de Siracusa no caso de Platão, um rei da Prússia para Voltaire, uma czarina da Rússia para Diderot – que converta em carne o seu verbo. A essa busca geralmente se segue uma decepção, mas nem por isso deixa, quem filosofa sobre a ação, de procurar aquele que transforme em prática a sua teoria.
Resumindo, a ética de princípios, que pode ser a do indivíduo privado, é a mais próxima de uma ética tradicional. Não se deve, porém, confundi-la com esta última, já que a tradição consiste em seguir acriticamente uma lista de mandamentos, um gabarito do que é certo ou errado – enquanto uma ética de princípios, ou valores, supõe que estes tenham sido meditados, ponderados, refletidos, antes de um sujeito os incorporar e assumir como seus. Mesmo assim, essa ética está perto da tradição na medida em que atribui aos valores uma vigência forte, ou até um caráter absoluto. Não os considera valores apenas porque valem, isto é, porque foram instituídos por um sujeito ao avaliar o mundo e suas circunstâncias. Essa última visão, que, simplificando, seria a introduzida por Nietzsche, soa geralmente fraca, aos olhos de quem defende ou pratica uma ética de princípios. Com efeito, derivar estes últimos dos interesses, vontade, desejos ou mesmo da consciência dos homens reduz-lhes o caráter normativo.
Já a ética da responsabilidade é aquela que se aplica na política – não: melhor dizendo, é aquela que vale sobretudo para quem age politicamente. (Agir politicamente, isto é, levando em conta as relações de poder, pensando na construção do futuro, pode fazer-se também fora da esfera usual da política: posso agir politicamente na minha vida pessoal, por exemplo). Essa ética é muito mal compreendida pelo grande público. O maior erro a seu respeito consiste em entendê-la como uma não-ética. Na política, tudo seria válido, já que validado pelos resultados. Mas não é assim que funciona esse tipo de ética.
Essencialmente, trata-se de uma ética da ação política, mais que da instituição política. Das instituições e da ação, já tratamos, ao desenvolver uma oposição entre Mandeville e Maquiavel. O pensador florentino priorizou a ação. Seu mundo é plástico, em constante mutação. É visto do ângulo do indivíduo criativo (e aqui Burckhardt o captou muito bem, ao vincular a Renascença à figura do condottiere, do guerreiro quase sem princípios que plasma o seu mundo). Já o inglês, autor da Fábula das abelhas, confere menor importância ao agir, e maior ao modo pelo qual este se desvia em instituições.
Não é esse o mesmo modo pelo qual Mandeville abre o mundo moderno. (Assim como se fala, em xadrez, de tal ou qual "abertura", diríamos que existem, nesta partida que é a modernidade, uma abertura Maquiavel e uma abertura Mandeville). O italiano enfatiza ações que procuram produzir determinados fins. Se não os produzem, isso se chama fracasso. César Borgia assim fracassou. Nem por isso, será ele menos digno de nossa admiração – sempre segundo Maquiavel. César Borgia bateu-se e fez o que pôde (ou quase). De todo modo, a medida da ação está na produção direta de seu resultado.
Já Mandeville se interessa por outra coisa. O seu ponto é como ações que visam a um fim, este não político, mas privado, econômico, interesseiro, egoísta3, podem ser canalizadas de modo a produzir indiretamente fins que, do ponto de vista social, sejam positivos. Por isso, seu problema é o da canalização, isto é, o das instituições que desviam o rumo consciente dos atos.
Nesse sentido, Mandeville pretende exatamente o contrário de Maquiavel. Para este último, o importante era preservar o sentido das ações. Bom seria que as ações de César Borgia, orientadas para a conservação de seu poder, dessem certo. Já para Mandeville, o importante é desviar o sentido dos atos. Bom será que o egoísmo e a ganância de cada indivíduo resultem em outra coisa, em livre concorrência, em progresso econômico.
O ponto de vista do indivíduo, e de sua ação, é o óculo ideal de Maquiavel (evidentemente, o do indivíduo chefe, líder, estadista ou pelo menos conquistador). Para Mandeville, porém, é fundamental desfocar esse ponto de vista, seqüestrar, de seus autores, os atos. Por isso, enfim, o resultado dos atos fica, para Maquiavel, aquém deles, raras vezes lhes emulando o alcance político – ao passo que, em Mandeville, o resultado vai além do ato, conferindo-lhe uma dimensão bem maior do que poderiam ter.
Essas diferenças entre os dois grandes mestres do xadrez político obedecem a uma diferença anterior e fundamental. Para Maquiavel, a ação e seu resultado compartilham um sentido político. César Borgia agindo, e o resultado histórico de suas ações, das de seus contemporâneos e ainda da fortuna, são, tudo, política. Já para Mandeville, a ação e seu resultado diferem radicalmente quanto ao sentido. A seu ver, nem a ação individual nem seu fruto histórico são políticos. Ocorre nele um esvaziamento significativo do teor político da vida. (E é a onipresença do político em Maquiavel que permite uma leitura recente, que enfatiza seus vínculos com o humanismo cívico).
Em Mandeville, a ação é radicalmente privada. Não é privada apenas porque se dá no recesso do lar, no íntimo da consciência, no cerne do coração. É-o porque somente busca interesses pessoais, agressivos em relação aos outros. É privada, até, na valoração má e negativa do termo. Evidentemente, o autor não quer com isso afirmar que o homem seja mau. Tomar o privado enquanto mau é um recurso argumentativo muito inteligente, pelo qual Mandeville implica o seguinte: se o que afirmo vale até para o pior, até para o mau em estado puro, valerá muito mais para quem é neutro eticamente ou mesmo bom4. De todo modo, ainda que a ação seja privada e egoísta, seu resultado é social.
Dos dois grandes exemplos de Mandeville, um reza que da ganância de cada um decorre a concorrência capitalista, o outro que da prostituição no porto de Amsterdam se segue o respeito à virtude das matronas e donzelas5. Nos dois casos, não só o móvel da ação individual (busca desenfreada do ganho econômico, desejo sexual do marinheiro, desejo de ganho ou indecência das prostitutas) não é político, mas também o resultado é social e não político. O esvaziamento do político significa, aqui, que a sociedade passa a ser pensada em termos, digamos, próprios, de seu funcionamento, e não mais como fruto de uma ação plasmadora do mundo. A sociedade é despolitizada nas suas causas e nos seus efeitos.
Maquiavel teria dificuldade em aceitar esses termos. Para ele, a construção da casa comum dos homens passava por uma ação que lhe imprimisse uma forma. Era essa ação o que mais lhe importava. Aqui, porém, a construção prescinde dos atores ou das ações – melhor dizendo, não prescinde deles, mas se faz mediante um desvio significativo em face da consciência ou do anseio que os movesse a agir.
Ora, o importante para Mandeville é justamente esse desvio. O decisivo, para ele, é estabelecer claramente tal desvio. "Vícios privados, benefícios públicos" assim significa que o ponto de vista do indivíduo, ou de sua consciência, se torna insuficiente para se entender o funcionamento do social. Além disso, e de forma nada acessória, por essa via o social substitui o político – e um social no qual a economia desempenha papel fundamental.
Dessas duas distintas aberturas, decorrem duas maneiras bastante diferentes de jogar a política. Se abrirmos com Mandeville, estaremos considerando a vida social como barata, e nos contentaremos com o papel de indivíduos procurando seu bem pessoal, e produzindo a vida social como que por acaso. (Evidentemente, toda a genialidade desse jogo está em fazer passar por acaso aquilo que não o é; em construir uma teia de relações que produza o social enquanto almejamos o particular).
Se abrirmos, porém, com Maquiavel, estaremos considerando o social como resultante do político. Reabilitaremos a ação política, seja esta a do estadista, seja a do opositor. O governante e o rebelde compartilham essa ética: veja-se por exemplo o que diz Julien Sorel, numa passagem d’O vermelho e o negro, de Stendhal, em que ele exalta o líder político que talvez tenha sido quem mais, ou melhor, mesclou os papéis de chefe revolucionário e de dirigente no governo:
"- Danton fez bem em roubar? – perguntou-lhe ele bruscamente [isto é, perguntou Julien Sorel a Mathilde de la Mole], e com um ar cada vez mais feroz. – Os revolucionários do Piemonte, da Espanha, deviam comprometer o povo com crimes? Dar a pessoas mesmo sem mérito todos os postos do Exército, todas as cruzes? As pessoas que tivessem essas cruzes não temeriam a volta do rei? Dever-se-ia saquear o tesouro de Turim? Numa palavra, senhorita – disse, aproximando-se dela com um ar terrível –, o homem que quiser expulsar da terra a ignorância e o crime deve passar como a tempestade e espalhar o mal ao acaso?"6
Basta essa passagem – que, observemos sem nos determos, no romance exerce o decisivo papel de consumar o enamoramento de Mathilde por Julien, ao perceber ela que lida com um homem superior, cujos devaneios não se limitam aos da vida privada, mas se alçam a questões das mais relevantes para a época –, basta essa passagem para mostrar que a ética da responsabilidade não é apenas a do governante. É também a do rebelde, seja ele Danton, seja Julien Sorel. É a de todo aquele que vê o social como podendo e/ou devendo ser plasmado por uma ação criadora – e pouco importa se esta é a do indivíduo ou a do grupo. A essa ação que cria o social, cabe chamar de ação política.
É política assim a ação que assume como seu o ponto de vista da criação, que pretende moldar, criar, o social. Há política quando nos fazemos sujeitos de uma realidade, isto é, quando não a tomamos por dada, ou por independente da ação humana, mas a concebemos como resultando dessa ação – e, melhor ainda, nos propomos a agir, moldando o mundo. Para se definir a ação como política, não tem mais valor falar ex parte principi, falar do lugar do príncipe – nem do do revolucionário, que contesta aquele a fim de lhe ocupar a posição. O que importa é, pois, uma atitude criativa, de quem se torna sujeito de sua vida, e não mais o lugar: a postura, e não a posição, eis o que conta. Sai-se de uma idéia de poder delineada a partir de um espaço, de um território, mais ou menos estáticos, e passa-se a uma política que tem mais a ver é com uma atitude, com um enfoque, com o rumo de uma ação.
(...)
NOTAS
1 É óbvio que esses adjetivos não são sinônimos. Mas, para o que nos interessa, estão bastante próximos, sendo sua diferença sobretudo de ênfase: no caráter religioso (e portanto algo altruísta) ou pessoal (e quem sabe egoísta) da boa conduta.
2 O nome de "príncipe dos sociólogos", dado por alguns a Fernando Henrique Cardoso, tem mais a ver com o constante trânsito interno entre as várias ciências sociais, do que com uma denominação precisa de área.
3 O que não significa que a ação política seja necessariamente desinteressada, altruísta.
4 Esse modo de argumentar aparece já no rei Jaime I da Inglaterra, quando mostra como mesmo o mau rei detém um direito divino: se a legitimidade cabe até para o tirano, o monarca que não segue o bem, quanto não valerá para os bons reis? Cf. meu Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu tempo, 2a edição, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, cap. V, esp. p. 147-49.
5 Mandeville, The Fable of the Bees, respectivamente notas G e H – na edição da Penguin, que é a que utilizamos, p. 118-30.
6 Parte II, cap. 9, p. 287-8 da ed. Abril, 1971, na trad. de De Sousa e Casemiro Fernandes; p. 228 do original francês, na ed. L’intégrale.

Este trecho faz parte do livro
A sociedade contra o social (Cia. das Letras, 2000).
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