Num dia de dezembro de 1513, um homem escreve a um amigo. Está no campo, banido. Foi preso e torturado. Mas não se queixa. Conta que passa o dia com os camponeses, gritando, jogando. À noite, porém, troca de roupa. Veste os melhores trajes. Lê os autores antigos e, espanto!, dialoga com eles. Ouve suas opiniões, suas idéias. (Essa passagem é sempre citada, quando se quer explicar a Renascença). Quase no final, informa que gastou algumas semanas escrevendo um livrinho, De principatibus (Dos principados), "onde me aprofundo tanto quanto posso nas cogitações desse tema...".
Gastou nisso umas poucas semanas, que definirão para a posteridade o seu nome – Nicolau Maquiavel ou, em italiano, Niccolò Machiavelli. A elas Maquiavel deverá a glória: seu nome gerará um adjetivo que todos conhecem. De uns trinta grandes filósofos, apenas dois – ele e Platão – chegaram a tanto. Mesmo quem nunca os leu tem noção do que é amor platônico ou ação maquiavélica. Não importa que nós, professores de filosofia, provemos que os adjetivos convêm mal aos dois filósofos. Eles pegaram. O renome de Maquiavel é maior que ele próprio.
Mas é um mau renome, uma má fama, infâmia. O Príncipe foi lido, bem cedo, como um livro de conselhos aos governantes, para quem os fins justificariam os meios (essa frase, aliás, não é de Maquiavel). Ele defenderia o despotismo e a amoralidade dos príncipes. Há aqui, porém, um problema. Maquiavel escreveu O Príncipe de um jato só, enquanto se dedicou vários anos a outro projeto – os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, um longo comentário ao historiador de Roma antiga.
Ora, os Discursos são uma obra republicana. E, se Maquiavel foi torturado a mando dos Médici, que acabavam de retomar Florença, isso se deveu a ter sido ele um dos líderes da República florentina. O Maquiavel mais extenso é republicano – e sobre ele temos um livro notável de Newton Bignotto, Maquiavel republicano (1991). Mas talvez o autor d’O Príncipe seja o Maquiavel mais intenso: essas semanas no campo emancipam a política da moral cristã.
Daí, questões sérias. Rousseau, dois séculos e meio depois d’O Príncipe (isto é, a meio caminho entre Maquiavel e nós), sugere: tudo seria uma enorme paródia. Republicano da gema, nosso autor teria contado – como a sério – todo o mal que os reis fazem, para fazer-nos odiá-los. Há um enigma Maquiavel. Ainda maior, porque O Príncipe é talvez a obra filosófica que parece mais fácil de ler. Nenhuma dificuldade para entender cada linha ou página. Só para saber o que, afinal, ele quis dizer.
Maquiavel começa distinguindo repúblicas e monarquias: falará delas. Dos reinos, uns são antigos e outros novos: só tratará dos novos. E, destes, uns foram conquistados por armas próprias e outros, com armas alheias e graças à fortuna (no sentido de sorte) – interessam-lhe estes. Como um novo governante, que não se beneficia da opinião favorável que a idade dá a um regime, pode conseguir ser aceito por seu povo? eis a questão. Isto é: como passar da força bruta ou da violência ao poder, que depende do consentimento dos dominados.
E com isso Maquiavel é um dos raros pensadores da política a pensar, não só o exercício, mas a tomada, do poder – não a continuidade, mas a novidade. Não é fortuito que o marxista italiano Antonio Gramsci tenha escrito sobre ele: Maquiavel pode ser revolucionário.
Todo governante procura "conservar o [seu] estado". Quer dizer seu estado de governante, a condição de quem manda. Mas daí brota outro sentido, que surge com Maquiavel: o Estado que o príncipe governa. E como o conservará? Não há receituário. Aqui está o erro de quem lê, n’O Príncipe, regras a aplicar. Pois o que ele destaca na política (ou aquilo a que seus leitores recentes se mostram mais atentos) é justamente o que exige argúcia e invenção!
Diz ele que deseja escrever coisa que preste, útil; por isso não tratará do Estado como deve ser mas como é; nada melhor, para que o governante planeje bem suas ações. A ação deliberada, planejada, eficaz se dá no plano do que ele chama de virtù e que nada tem a ver com a virtude, no sentido cristão ou moral. Mas ninguém realiza todos os seus planos. Metade dos resultados de nossas ações, diz, se deve à virtù, metade à fortuna.
Uma forte convicção medieval era que o governante deveria seguir a moral cristã. Era essa a chave do bem governar. Mas Maquiavel mostra, usando a história e a experiência, que sempre venceu quem pensou mais no êxito do que na moral ou na salvação da alma. Nem por isso devemos ser cruéis de propósito: ele recomenda praticar o bem sempre que possível, o mal quando necessário.
Só que o governante não tem garantia de sucesso. Este sempre é incerto. Um homem privado pode, se respeitar leis e regras, vencer na vida; vive no quadro de um sistema que premia e pune; mas um governante, que não tem rede a protegê-lo, não tem segurança disso.
Lembremos o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele falou muito na ética da responsabilidade, conceito que Max Weber cunhou para dar conta do que Maquiavel iniciara. Teríamos por um lado a ética de princípios ou valores, e por outro a que leva em conta os efeitos previsíveis da ação. O homem privado poderia dar-se ao luxo de seguir os princípios, em sua pureza.
Já o homem público precisa pautar-se pela ética da responsabilidade, insistia FHC, citando Weber (teve a cautela de não citar Maquiavel). Esse foi um ponto de debate no governo passado, com parte da oposição atacando o presidente em nome de um discurso moral. Subentendia-se que a ética da responsabilidade fosse uma ética com desconto, uma ética enfraquecida, até mesmo uma não-ética. Mas ela não é isso.
Se o subtexto de FHC era Maquiavel, não era amoral. A melhor bibliografia atual repudia a imagem de um Maquiavel anti-ético. Destaquemos o livro de Claude Lefort, comentado adiante, que precisaria ser traduzido. Ou o livro utilíssimo de Quentin Skinner, Maquiavel, infelizmente esgotado (Brasiliense), ou ainda duas passagens de seu Fundações do pensamento político moderno (Companhia das Letras).
Dois brilhantes textos mais curtos valorizam a ética de Maquiavel. Isaiah Berlin, em "A originalidade de Maquiavel" (in Estudos sobre a humanidade, Companhia das Letras), diz que na obra dele não se opõem a ética e uma política sem ética – mas duas éticas. Uma é cristã, preza a salvação da alma. Outra – a do Príncipe – é pagã e valoriza a pólis, a cidade, este mundo.
Mas o grande pequeno artigo é a "Nota sobre Maquiavel", de Merleau-Ponty (in Signos, Martins Fontes). Diz ele que uma bondade "incapaz de dureza" (a ética dos princípios) não é verdadeira, nem sequer para o indivíduo – e que O Príncipe encarna "algumas das condições de todo humanismo sério" e, mais que isso, "a regra de uma verdadeira moral". Esta exige levarmos em conta as conseqüências prováveis de nossos atos. De nada vale ficar nas boas intenções. Maquiavel terá lançado as bases da ética de nossos tempos. Merleau-Ponty assim efetua uma enorme reviravolta, que faz o filósofo mais mal falado de todos – e cujo prenome gerou em inglês um apelido para o diabo, "Old Nick" – se tornar um possível grande pensador ético.
Talvez isto signifique o seguinte: na Idade Média, o quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto do súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava isso para fazer um bom rei ou um fiel cristão. Maquiavel mostra que o príncipe não está mais submetido – nem protegido – por esse quadro. É essa insegurança que lhe dá liberdade. Ninguém é livre sem ansiedade. Mas hoje temos um mundo em que também se desfizeram os quadros de referência que protegiam – e prendiam – os cidadãos. Não só o príncipe, mas todos nós.
Se, na reflexão de FHC, a vida pública é diferente da vida privada, o que vemos hoje – e disso se aperceberam os comentadores recentes de Maquiavel – é que a vida privada tomou cores que eram da vida pública. O ex-presidente também errou, ao separá-las. Pois a vida privada igualmente se tornou insegura: casamentos, empregos e até profissões terminam.
Essa insegurança é maior, mais duradoura e mais inquietante do que a gerada pelo temor do assalto: nenhuma polícia pode superá-la. Por isso, não é verdade que o homem privado possa ignorar a lição d’O Príncipe. Hoje é ele quem mais tem a aprender lendo esse poderoso livro. Porque cada um de nós está, em certa medida, na condição do príncipe de Maquiavel: com mais liberdade do que nunca antes, mas também mais inseguro.
Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na USP e curador deste dossiê, é autor de A sociedade contra o social (Companhia das Letras), Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu tempo (Ed. UFMG) e de A universidade e a vida atual (Campus), entre outras obras.
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