Mostrando postagens com marcador moral. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador moral. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 1 de junho de 2010

Quem dá mais?

Li uma frase ótima de Albert Einstein: "A energia atômica mudou tudo, exceto nossa forma de pensar... a solução para esse problema está dentro do coração do homem. Se eu soubesse disso antes, teria me tornado relojoeiro."

Refletindo sobre a frase me lembrei que nos anos 80 Michael Jackson liderou uma campanha memorável chamada "We Are The World", para combater a fome na África. Quem não se lembra? A principal peça da campanha era a música homônima, gravada por dezenas de astros da música e registrada num vídeoclipe antológico. O disco com a canção vendeu até hoje mais de 20 milhões de cópias e levantou cerca de 63 milhões de dólares em fundos. Foi uma ação muito bonita, comovente até, mostrando como os formadores de opinião podem - a um custo pessoal muito baixo - ajudar a mudar a realidade.

Comprei recentemente o DVD comemorativo dos 25 anos daquela gravação. Uma delícia. Nos extras, um documentário acompanha alguns artistas numa visita a um campo de refugiados na África, durante a entrega dos alimentos. O cenário é desolador, as imagens fortes e o alívio da chegada dos alimentos, emocionante. Foi quase uma mobilização de guerra.

Lá pelas tantas, desolado, o músico Harry Belafonte faz uma declaração impactante. Ele diz sentir-se impotente diante da certeza de que o dinheiro levantado jamais chegaria até os necessitados. Não havia caminhões, estradas, gente nem estrutura para distribuir as doações. Além disso, brigas políticas e bandidos desviavam o pouco que chegava. Para ele, todo o esforço tinha pouco ou nenhum resultado.

Os bem intencionados artistas não contavam com os problemas de logística. Para eles, o importante era levantar dinheiro e alimentos. Também não contavam com a engenhosidade do homem para roubar, enganar, oprimir e mentir.

E os africanos continuam morrendo de fome.

Essa história levanta uma lebre interessante: o problema do mundo não é falta de alimentos. Nem falta de dinheiro. Nem é logístico. A recente tragédia do Haiti mostrou como podemos nos mobilizar para ajudar os necessitados em qualquer parte do planeta. No Haiti não faltam dinheiro, nem gente e nem alimentos. Nem mesmo estrutura. O problema é outro.

Como está implícito na frase de Albert Einstein, o gênio humano é fascinante. A tecnologia que ele cria é capaz de mobilizar o mundo, de curar doenças, de ampliar a produção de alimentos, de baratear a energia, de conectar as pessoas, de quebrar um átomo. Mas esse gênio não tem moral. Está a serviço da construção e da destruição, com a mesma facilidade.

Mas cabe aqui um pedido: por favor, resista à tentação de me escrever com aquela lengalenga anticapitalista, o discurso raso que coloca a culpa desse "monetarismo", no "capital" e por tabela nos Estados Unidos, o grande monstro adorador de dinheiro e devorador de almas.

Se você ainda não percebeu, assim como o gênio capitalista, o carnavalesco e o futebolista, o gênio comunista, o socialista, o gramcista, o castrista e o petista também se entrega a quem pagar mais.

O gênio humano não tem ideologia. Entrega-se a quem pagar melhor.

Luciano Pires
COMENTE ESTE TEXTO:
http://www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topicID=13006&pageNo=1&num=20

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Cartesianismo


Considerações Gerais

O pensamento de Descartes exercerá uma influência vasta no mundo cultural francês e europeu, diretamente até Kant e indiretamente até Hegel. E exerceu tal influência não tanto como sistema metafísico, quanto especialmente pelo espírito crítico, pelo método racionalista, implícito nas premissas do sistema e realizado apenas parcialmente pelo filósofo.

O desenvolvimento lógico do cartesianismo é representado por alguns grandes pensadores originais: Spinoza, Malebranche, Leibniz. Spinoza é a mais coerente e extrema expressão do racionalismo moderno depois do fundador e antes de Kant; Malebranche e Leibniz encontram, ao contrário, nas suas preocupações práticas, religiosas e políticas, limitações ao desenvolvimento lógico e despreocupado do racionalismo.

Ladeia estes três pensadores uma turma numerosa de cartesianos mais ou menos ortodoxos, particularmente na França na segunda metade do século XVII. Significativa é a influência que o criticismo e o racionalismo cartesianos exerceram sobre a cultura do século de Luís XIV, o século de ouro da civilização francesa; sobre a arte de Racine e de La Fontaine, sobre a poética de Boileau, a ética de La Bruyère, o pensamento de Bayle.

Descartes teve seguidores também em determinados meios religiosos de orientação platônico-agostiniana, mais ou menos ortodoxos. Os dois centros principais desse sincretismo são representados pelo Jansenismo e pelo Oratório. Brás Pascal, porém (se bem que, em parte, jansenista), grande físico e matemático, mas de um profundo sentimento religioso e cristão, parece ter tido intuição da falha da filosofia cartesiana. À razão matemática, científica - espírito geométrico - que vale para o mundo natural mas não chega até Deus, contrapõe a razão integral - esprit de finesse - que leva até o cristianismo.

Descartes teve numerosos adversários e críticos no campo filosófico, entre os quais Hobbes. Entretanto, as oposições maiores contra o cartesianismo surgiram evidentemente no ambiente eclesiástico e político, quer católico quer protestante. Nesses ambientes houve a intuição de um perigo revolucionário para a religião e a ordem social, por causa do criticismo, mecanismo e infinidade do universo, próprios daquela filosofia.

E, no entanto, o cartesianismo forjou a mentalidade (racionalista-matemática) dos maiores filósofos até Kant. E também propôs os grandes problemas em torno dos quais girou a especulação desses filósofos, a saber: a relação entre substância finita de um lado, e entre espírito e matéria do outro. Daí surgiram o ontologismo e o ocasionalismo de Malebranche, a harmonia preestabelecida de Leibniz e o panteísmo psicofísico de Spinoza.

Baruch Spinoza

O racionalismo cartesiano é levado a uma rápida, lógica, extrema conclusão por Spinoza. O problema das relações entre Deus e o mundo é por ele resolvido em sentido monista: de um lado, desenvolvendo o conceito de substância cartesiana, pelo que há uma só verdadeira e própria substância, a divina; de outro lado introduzindo na corrente racionalista-cartesiana uma preformada concepção neoplatônica de Deus, a saber, uma concepção panteísta-emanatista. O problema, pois, das relações entre o espírito e a matéria é resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. Une os dois na mesma substância segundo um paralelismo psicofísico, uma animação universal, uma forma de pampsiquismo. Em geral, pode-se dizer que Descartes fornece a Spinoza o elemento arquitetônico, lógico-geométrico, para a construção do seu sistema, cujo conteúdo monista, em parte deriva da tradição neoplatônica, em parte do próprio Descartes.

Os demais racionalistas de maior envergadura da corrente cartesiana se seguem, cronologicamente, depois de Spinoza; entretanto, logicamente, estão antes dele, pois não têm a ousadia - em especial Malebranche - de chegar até às extremas conseqüências e conclusões racionalista-monista, exigidas pelas premissas cartesianas, detidos por motivos práticos-religiosos e morais, que não se encontram em Spinoza. Com isto não se excluem, por parte deles, desenvolvimentos em outro sentido. Por exemplo, não se excluem os desenvolvimentos idealistas do fenomenismo racionalista por parte de Leibniz.

Vida e Obras

Baruch Spinoza nasceu em Amsterdam em 1632, filho de hebreus portugueses, de modesta condição social, emigrados para a Holanda. Recebeu uma educação hebraica na academia israelita de Amsterdam, com base especialmente nas Sagradas Escrituras. Demonstrando muita inteligência, foi iniciado na filosofia hebraica (medieval-neoplatônico-panteísta) e destinado a ser rabino.

Mas, depois de se manifestar o seu racionalismo e tendo ele recusado qualquer retratação, foi excomungado pela Sinagoga em 1656. Também as autoridades protestantes o desterraram como blasfemador contra a Sagrada Escritura. Spinoza reitrou-se, primeiro, para os arredores de Amsterdam, em seguida para perto de Leida e enfim refugiou-se em Haia. Aos vinte e cinco anos de idade esse filósofo, sem pátria, sem família, sem saúde, sem riqueza, se acha também isolado religiosamente.

Os outros acontecimentos mais notáveis na formação espiritual especulativa de Spinoza são: o contacto com Francisco van den Ende, médico e livre pensador; as relações travadas com alguns meios cristão-protestantes. Van den Ende iniciou-o no pensamento cartesiano, nas línguas clássicas, na cultura da Renascença; e nos meios religiosos holandeses aprendeu um cristianismo sem dogmas, de conteúdo essencialmente moralista.

Além destes fatos exteriores, nada encontramos de notável exteriormente na breve vida de Spinoza, inteiramente dedicada à meditação filosófica e à redação de suas obras. Provia pois às suas limitadas necessidades materiais, preparando lentes ópticas para microscópios e telescópios, arte que aprendera durante a sua formação rabínica; e também aceitando alguma ajuda do pequeno grupo de amigos e discípulos. Para não comprometer a sua independência especulativa e a sua paz, recusou uma pensão oferecida pelo "grande Condé" e uma cátedra universitária em Heidelberg, que lhe propusera Carlos Ludovico, eleitor palatino.

Uma tuberculose enfraquecera seu corpo. Após alguns meses de cama, Spinoza faleceu aos quarenta e quatro anos de idade, em 1677, em Haia. Deixou uma notável biblioteca filosófica; mas a sua herança mal chegou para pagar as despesas do funeral e as poucas dívidas contraídas durante a enfermidade.

Um traço característico e fundamental do caráter de Spinoza é a sua concepção prática, moral, de filosofia, como solucionadora última do problema da vida. E, ao mesmo tempo, a sua firme convicção de que a solução desse problema não é possível senão teoreticamente, intelectualmente, através do conhecimento e da contemplação filosófica da realidade.

As obras filosóficas principais de Spinoza são: a Ethica (publicada postumamente em Amsterdam em 1677), que constitui precisamente o seu sistema filosófico; o Tractatus theologivo-politicus (publicado anônimo em Hamburgo em 1670), que contém a sua filosofia religiosa e política.

A princípio desconhecido e atacado, o pensamento de Spinoza acabou por interessar e influenciar particularmente a cultura moderna depois de Kant (Lessing, Goethe,Schelling, Hegel, Schleiermacher, etc.), proporcionando ao idealismo o elemento metafísico monista, naturalmente filtrado através da crítica kantiana.

O Pensamento: Deus

A teologia de Spinoza é contida, substancialmente, no primeiro livro da Ethica (De Deo). Spinoza quereria deduzir de Deus racionalmente, logicamente, geometricamente toda a realidade, como aparece pela própria estrutura exterior da Ethica ordine geometrico demonstrata. Não nos esqueçamos de que o Deus spinoziano é a substância única e a causa única; isto é, estamos em cheio no panteísmo. A substância divina é eterna e infinita: quer dizer, está fora do tempo e se desdobra em número infinito de perfeições ou atributos infinitos.

Desses atributos, entretanto, o intelecto humano conhece dois apenas: o espírito e a matéria, a cogitatio e a extensio. Descartes diminuiu estas substâncias, e no monismo spinoziano descem à condição de simples atributos da substância única. Pensamento e extensão são expressões diversas e irredutíveis da substância absoluta, mas nela unificadas e correspondentes, graças à doutrina spinoziana do paralelismo psicofísico.

A substância e os atributos constituem a natura naturans. Da natura naturans (Deus) procede o mundo das coisas, isto é, os modos. Eles são modificações dos atributos, e Spinoza chama-os natura naturata (o mundo). Os modos distinguem-se em primitivos e derivados. Os modos primitivos representam as determinações mais imediatas e universais dos atributos e são eternos e infinitos: por exemplo, o intellectus infinitus é um modo primitivo do atributo do pensamento, e o motus infinitus é um modo primitivo do atributo extensão.

As leis do paralelismo psicofísico, que governam o mundo dos atributos, regem naturalmente todo o mundo dos modos, quer primitivos quer derivados. Cada corpo tem uma alma, como cada alma tem um corpo; este corpo constituiria o conteúdo fundamental do conhecimento da alma, a saber: a cada modo de ser e de operar na extensão corresponde um modo de ser e de operar do pensamento. Nenhuma ação é possível entre a alma e o corpo - como dizia também Descartes - e como Spinoza sustenta até o fundo.

A lei suprema da realidade única e universal de Spinoza é a necessidade. Como tudo é necessário na natura naturans, assim tudo também é necessário na natura naturata. E igualmente necessário é o liame que une entre si natura naturans e natura naturata. Deus não somente é racionalmente necessitado na sua vida interior, mas se manifesta necessariamente no mundo, em que, por sua vez, tudo é necessitado, a matéria e o espírito, o intelecto e a vontade.

O Homem

Do primeiro livro da Ethica - cujo objeto é Deus - Spinoza passa a considerar, no segundo livro (De mente), o espírito humano, ou, melhor, o homem integral, corpo e alma. A cada estado ou mudança da alma, corresponde um estado ou mudança do corpo, mesmo que a alma e o corpo não possam agir mutuamente uma sobre o outro, como já se viu.

Não é preciso repetir que, para Spinoza, o homem não é uma substância. A assim chamada alma nada mais é que um conjunto de modos derivados, elementares, do atributo pensamento da substância única. E, igualmente o corpo nada mais é que um complexo de modos derivados, elementares, do atributo extensão da mesma substância. O homem, alma e corpo, é resolvido num complexo de fenômenos psicofísicos.

Mesmo negando a alma e as suas faculdades, Spinoza reconhece várias atividades psíquicas: atividade teorética e atividade prática, cada uma tendo um grau sensível e um grau racional.

A respeito do conhecimento sensível (imaginatio), sustenta Spinoza que é ele inteiramente subjetivo: no sentido de que o conhecimento sensível não representa a natureza da coisa conhecida, mas oferece uma representação em que são fundidas as qualidades do objeto conhecido e do sujeito que conhece e dispõe tais representações numa ordem fragmentária, irracional e incompleta.

Spinoza distingue, pois, o conhecimento racional em dois graus: conhecimento racional universal e conhecimento racional particular. A ordem oferecida pelo conhecimento racional particular nada mais é que a substância divina; abrange ela, na sua unidade racional, os atributos infinitos e os infinitos modos que a determinam. E desse conhecimento racional intuitivo, místico, derivam necessariamente a felicidade e virtude supremas. Das limitações do conhecimento sensível decorrem o sofrimento e a paixão, dada a universal correspondência spinoziana entre teorético e prático.

Visto o paralelismo psicofísico de Spinoza, é claro que o conhecimento, no sistema spinoziano, não é constituído pela relação de adequação entre a mente e a coisa, mas pela relação de adequação da mens do sujeito que conhece a mens do objeto conhecido.

A Moral

Como é sabido, Spinoza dedica ao problema moral e à sua solução os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz ele uma história natural das paixões, isto é, considera as paixões teoricamente, cientificamente, e não moralisticamente. O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza energicamente no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude rigidamente científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção universalmente determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões podem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas, as superfícies, as figuras geométricas.

Depois de nos ter oferecido um sistema do mecanismo das paixões no IV livro da Ethica, Spinoza esclarece precisamente e particularmente a escravidão do homem sujeito às paixões. Essa escravidão depende do erro do conhecimento sensível, pelo que o homem considera as coisas finitas como absolutas e, logo, em choque entre si e com ele. Então a libertação das paixões dependerá do conhecimento racional, verdadeiro; este conhecimento racional não depende, entretanto, do nosso livre-arbítrio, e sim da natureza particular de que somos dotados.

No V e último livro da Ethica, Spinoza esclarece, em especial, a condição do sábio, libertado da escravidão das paixões e da ignorância. O sábio realiza a felicidade e a virtude simultânea e juntamente com o conhecimento racional. Visto que a felicidade depende da ciência, do conhecimento racional intuitivo - que é, em definitivo, o conhecimento das coisas em Deus - o sábio, aí chegado, amará necessariamente a Deus, causa da sua felicidade e poder. Tal amor intelectual de Deus é precisamente o júbilo unido com a causa racional que o produz, Deus. Este amor do homem para com Deus, é retribuído por Deus ao homem; entretanto, não é um amor como o que existe entre duas pessoas, pois a personalidade é excluída da metafísica spinoziana, mas no sentido de que o homem é idêntico panteisticamente a Deus. E, por conseguinte, o amor dos homens para com Deus é idêntico ao amor de Deus para com os homens, que é, pois, o amor de Deus para consigo mesmo (por causa precisamente do panteísmo).

Chegado ao conhecimento e à vida racionais, o sábio vive já na eternidade, no sentido de que tem conhecimento eterno do eterno. A respeito da imortalidade da alma, devemos dizer que é excluída naturalmente por Spinoza como sobrevivência pessoal porquanto pessoa e memória pertencem à imaginação. A imortalidade, então, não poderá ser entendida senão como a eternidade das idéias verdadeiras, que pertencem à substância divina. De sorte que imortais, ou eternas, ou pela máxima parte imortais, serão as almas ou os pensamentos dos sábios, ao passo que às almas e aos pensamentos dos homens vulgares, como que limitados ao conhecimento e à vida sensíveis, é destinado o quase total aniquilamento no sistema racional da substância divina.

A Política e a Religião

Spinoza tratou particularmente do problema político e religioso no Tractatus theologico-politicus. Considera ele o estado e a igreja como meios irracionais para o advento da racionalidade. As ações feitas - ou não feitas - em vista das penas ou dos prêmios temporais e eternos, ameaçados ou prometidos pelo estado e pela igreja, dependem do temor e da esperança, que, segundo Spinoza, são paixões irracionais. Elas, entretanto, servem para a tranquilidade do sábio e para o treinamento do homem vulgar.

No estado de natureza, isto é, antes da organização política, os homens se encontravam em uma guerra perpétua, em uma luta de todos contra todos. É o próprio egoísmo que impede os homens a se unirem, a se acordarem entre si numa espécie de pacto social, pelo qual prometem renunciar a toda violência, auxiliando-se mutuamente. No entanto, não basta o pacto apenas: precisa o homem do arrimo da força para sustentar-se. De fato, mesmo depois do pacto social, os homens não cessam de ser, mais ou menos, irracionais e, portanto, quando lhes fosse cômodo e tivessem a força, violariam, sem mais, o pacto. Nem há quem possa opor-se a eles, a não ser uma força superior, porquanto o direito sem a força não tem eficácia. Então os componentes devem confiar a um poder central a força de que dispõem, dando-lhe a incumbência e o modo de proteger os direitos de cada um. Só então o estado e verdadeiramente constituído. Entretanto, o estado, o governo, o soberano podem fazer tudo o que querem: para isso têm o poder e, portanto, o direito, e se acham eles ainda no estado de pura natureza, do qual os súditos saíram.

O estado, porém, não é dominador supremo, porquanto não é o fim supremo do homem. Seu fim supremo é conhecer a Deus por meio da razão e agir de conformidade, de sorte que será a razão a norma suprema da vida humana. O papel do estado é auxiliar na consecução racional de Deus. Portanto, se o estado se mantivesse na violência e irracionalidade primitivas, pondo obstáculos ao desenvolvimento racional da sociedade, os súditos - quando mais racionais e, logo, mais poderosos do que ele - rebelar-se-ão necessariamente contra ele, e o estado cairá fatalmente. Faltando-lhe a força, faltar-lhe-á também o direito. E de suas ruínas deverá surgir um estado mais conforme à razão. E, assim, Spinoza deduz do estado naturalista o estado racional.

O outro grande instituto irracional a serviço da racionalidade é, segundo Spinoza, a religião, que representaria um sucedâneo da filosofia para o vulgo. O conteúdo da religião positiva, revelada, é racional; mas é a forma que seria absolutamente irracional, pois o conhecimento filosófico de Deus decairia em uma revelação mítica; a ação racional, que deveria derivar do conhecimento racional com a mesma necessidade pela qual a luz emana do sol, decairia no mandamento divino heterônomo, a saber, a religião positiva, revelada, representaria sensivelmente, simbolicamente, de um modo apto para a mentalidade popular, as verdades racionais, filosóficas acerca de Deus e do homem; tais verdades podem aproveitar ao bem desse último, quando encarnadas nos dogmas. Por conseguinte, o que vale nos dogmas não seria a sua formulação exterior, e sim o conteúdo moral; nem se deveria procurar neles sentidos metafísicos arcanos, porque o escopo dos dogmas é essencialmente prático a saber: induzir à submissão a Deus e ao amor ao próximo, na unificação final de tudo e de todos em Deus.

Original no site:
http://www.algosobre.com.br/sociofilosofia/cartesianismo.html

terça-feira, 28 de julho de 2009

Ética e Moral


Nos dias de hoje, muitos citam a palavra "ética", mas, quando perguntados, não conseguem explicá-la nem defini-la. Por isso, o objetivo deste tópico é colocar o conceito de Ética em crise com a intenção de torná-lo mais radical e profundo.
Num primeiro momento, ética lembra-nos norma e responsabilidade. Dessa forma, falar de ética significa falar de liberdade, pois não há sentido falar de norma ou de responsabilidade se não partirmos da suposição de que o ser humano é realmente livre, ou pode sê-lo.
A norma diz-nos como devemos agir. E, se devemos agir de tal modo, é porque também podemos não agir deste modo. Isto é, se devemos obedecer, é porque podemos desobedecer ou somos capazes de desobedecer à norma.
Também não haveria sentido falar de responsabilidade, palavra que deriva de resposta, se o condicionamento ou o determinismo fosse tão completo a ponto de considerar a resposta como mecânica ou automática.
Se afirmarmos que o determinismo é total, não há o que falar de Ética; pois a Ética refere-se às ações humanas, e, se elas são totalmente determinadas de fora para dentro, não há espaço para a liberdade, como autodeterminação e, conseqüentemente, não há espaço para a Ética.
O extremo oposto ao determinismo, representado por uma concepção que acredita na liberdade total e absolutamente incondicionada, nega igualmente a ética, porque se resumiria apenas à liberdade de pensamento, sem a possibilidade de se agir, na prática, de acordo com os pensamentos.
Seria, então, uma liberdade abstrata, deixando que a liberdade real se resumisse a algo meramente interior. Desta forma, vamos abordar a questão da ética de acordo com a concepção original da reflexão grega, que não é apenas teórica, mas que efetivamente se manifesta na conduta do ser humano livre. Para a maioria das pessoas, Ética e Moral têm o mesmo significado, mas, numa análise mais rigorosa, podemos constatar que são conceitos diferentes. São palavras que diferem na origem e só se aproximam no significado, porque as condutas morais acabam expressando um determinado tipo de postura ética.
O termo mos, do latim, dá origem à palavra “moral”, relacionada aos costumes e hábitos, enquanto o termo ethos, do grego, dá origem à palavra “ética”, relacionada ao modo de ser ou à maneira pela qual alguém se expressa. Portanto, servem para nomear duas disciplinas distintas, embora a primeira seja subordinada à segunda.
Os autores divergem, alguns afirmam que a Ética nada mais é do que a disciplina que estabelece regras de conduta para a sociedade por influência de fatores de ordem religiosa, política, econômica, enfim, ideológica. Dessa forma, o conceito tem sido usado em códigos de conduta profissional ou partidária, compostos de alguns elementos éticos que, na verdade, são conjuntos de normas que determinado grupo se dispõe a adotar.
Negam-lhe, assim, qualquer fundamento ontológico. Ao se tratar a Ética como Moral, e essa como Religião, perde, aos olhos incrédulos dos homens da nossa época, o seu verdadeiro valor. Políticos, governantes, líderes religiosos e mesmo professores empregam a palavra “ética”, nos seus discursos, para impressionar os ouvintes, tal o peso que ela contém. Usam-na indevidamente e deslocada do seu real significado.
A raiz da Ética é de natureza antropológica e tem como objeto o homem inserido concretamente na vida prática. Mas é, também, ontológica porque tem como objeto o posicionamento do ser humano, que exige reflexão, escolha e apreciação de valores.
A distinção entre Ética e Moral é mais nítida do que possa parecer à primeira vista, pois enquanto a Moral limita-se ao estudo dos costumes e da variante das relações humanas, a Ética, como disciplina filosófica, dedica-se à revelação de valores, que norteiam o dever-ser dos humanos.
Esses conceitos geralmente andam próximos e, por isso, têm sido empregados com significados diferentes, nos mais diversos contextos, mas interpretados pelo público no sentido comum.
Portanto, é fundamental insistir na distinção entre Ética e Moral, para que possamos organizar os nossos pensamentos.
Moral é o conjunto de regras que se impõem às pessoas por um impulso que move o grupo, numa ação coletiva que tende a agir de determinada maneira. É a consolidação de práticas e costumes, observadas no geral pelo receio de uma reprovação social (a pressão é externa). Partindo desse pressuposto, todo ser humano é moral ao cumprir ou deixar de cumprir as regras sociais, sem questionar.
Ética envolve reflexão, por isso não significa um conjunto qualquer de normas, mas sim, um conjunto de juízos valorativos, assumidos e manifestados na ação individual de cada um (a pressão é interna).
Os gregos referiam-se ao “ethos” como uma força de raiz ontológica, manifestada no indivíduo determinando sua conduta. Havia um significado profundo, relacionado a um modo de ser remetido ao princípio universal, pressupondo sempre que algo maior fala pelo humano, que é a expressão de algo anterior a ele.
Dessa forma, a Ética grega, que também significa uma maneira de ser em sociedade, é um campo de reflexão que envolve investigação e questionamento a respeito da conduta humana que se determina a partir de princípios imutáveis.
Essa incompreensão, predominante nos dias de hoje, é um fator de confusão e prejuízo para o próprio homem, porque este, desviado da visão nítida dos imperativos éticos, passou a compreender o dever-ser, face a si mesmo, ao seu semelhante e, também, à natureza, como apenas questões a serem reguladas por normas morais ou, com mais rigor, por normas legais, ambas estabelecidas por outros seres humanos, geralmente, de forma arbitrária.
Todos esses, que assim entendem, deixam de reconhecer que a verdadeira essência do homem continua sendo o dever-ser que se frustra diante da vontade. Assim, o que caracteriza a Ética é a postura assumida pelo dever-ser autodeterminado por convicção, estabelecendo seus próprios limites para a atuação no mundo.
(Texto recebido de um colaborador anônimo, sem a devida autoria. Se alguém puder ajudar a identicá-lo, por favor, não deixe de fazê-lo. Grato!)

quarta-feira, 11 de março de 2009

Conceitos estruturais da ética



A definição de ética e os seus conceitos estruturais
Podemos dizer que ética é a ciência do ethos, atendendo à derivação etimológica do termo ética e à evolução que o levou a substantivar-se nas línguas modernas para designar um tipo específico de saber formalmente definido e integrado no corpo epistemológico e didático, seja das Ciências Humanas ou da Filosofia.
Mesmo com uma linguagem bastante simples será difícil formular e justificar uma definição real da Ética em sua versão propriamente filosófica, até porque, historicamente, foi na filosofia que, originariamente, se constituiu a ciência do ethos, portanto, ainda é a única forma adequada que nos permite pensar os fundamentos racionais dessa ciência.
A Ética, no entanto, tem por objeto o ethos que se apresenta como um fenômeno histórico-cultural dotado de evidência imediata e impondo-se à experiência do indivíduo tão logo este alcance a primeira idade da racional, onde as ciências empíricas do ethos implicam a universalidade dessa experiência, traduzindo-se em paradigmas de linguagem e conduta e revelando-se em um dado antropológico incontestável.
O fenômeno ético é que irá nos oferecer um substrato empírico às categorias fundamentais da Ética. Por exemplo: a intenção da vida no bem e, conseqüentemente, o agir segundo o bem, do qual deriva a vida melhor ou mais feliz, para o agente ético e a excelência ou virtude de seu agir ou de ser, sendo que o bem deve ser realizado, embora não pela coação, mas pela persuasão, onde esses termos da tradicional moral grega implicam em seu conteúdo semântico o conceito fundamental de bem, eixo conceptual em torno do qual se construíram os grandes sistemas éticos da tradição ocidental.
O ethos é, assim, inseparavelmente, social e individual, é uma realidade sócio-histórica, mas só existe concretamente, na pratica dos indivíduos.
A fenomenologia apresenta-se como um método propedêutico à Ética. Assim, não podemos no deter, apenas, em um método fenomenológico, ontológico, interiores, pois, este se constrói através de uma concepção filosófica cujo alcance transcende os limites da descrição fenomenológica.
Assim, torna-se inevitável o recurso a uma ontologia do sujeito ético em que se estudam os fenômenos interiores, já que o ethos tem uma estrutura dual, ou seja, sua dupla face: social e individual.
Apesar do que vimos, estamos, atualmente, vivenciando um período de reconhecida dicotomia entre a forma originária da própria filosofia e, conseqüentemente, da ÉTICA, constituindo a ciência do ethos e o mundo atual em que a Filosofia e seus fundamentos perderam o espaço do saber, da razão, para um espaço do mecanicismo predominante no século XX.
Mas, mesmo diante de variadas definições e conceitos sobre a ética, o homem tem demonstrado que não vive sozinho, pois, como ser humano, coexiste com seus hábitos, costumes, tradições, sonhos, trabalhos etc, dentro de uma ordem moral, onde os seus atos, desde que visem o bem, são tidos como éticos.
Logo, todos os atos humanos devem se alicerçar em atos éticos, com princípios que a fundamente para que possa exteriorizar o seu comportamento moral (moral efetiva) em um comportamento moral ético (moral reflexiva), que é absolutamente necessário para que a ética se sustente e melhore a convivência social.
É assim que a ética acaba se dando através de tantos pequenos e firmes costumes que são as vigas mestras internas para a ética, a moral, ou seja, os hábitos e as leis que governam nosso dia-a-dia em todos os sentidos e campo de atuação do homem.
Mas, atualmente, a palavra moral é considerada normalmente sinônimo de ética. Todavia, analisando com mais atenção, podemos fazer uma distinção muito útil, sobretudo, para tempos críticos como este que estamos passando, onde a ética é a moral sirva de forma de ação.
Contudo, á ética não é um movimento apenas intelectual, mas um impulso quase intuitivo e profundamente orientado por questões de sobrevivência a longo prazo, já que diante das novas realidades, o ser humano encontra a ética não mais como uma realidade ideal, em que ele tem desafios e obstáculos nas relações que mantém, passando aagir eticamente nas situações comuns da vida para uma melhor socialização.
Desta forma, as ações éticas acontecem quando os valores no conteúdo e no exercício do ato são valores humanos e humanizadores, em que a igualdade, a justiça, a dignidade da pessoa, a democracia, a solidariedade, o desenvolvimento integral de cada um e de todos é respeitado e garantido de forma plena e eficaz para a formação de uma sociedade mais equilibrada e justa.
Original em:
.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Resgatando o Amor e Ética nas Relações


Os relacionamentos humanos estão em crise. Crise porque está acontecendo grande transformação na forma de se desempenhar os papéis sociais, sejam papéis como pais, sejam como homem e mulher e todos os outros. Crise porque nesta transformação de papéis não se sabe claramente o que pode ou não pode, o que é certo ou o que é errado fazer ou exigir numa relação. Mas, a pior de todas as crises é a crise moral e ética em que vivemos.
A coisa está tão séria que vemos explodir as denúncias de corrupção na política, a impunidade descabida correndo solta, vemos a violência desenfreada na sociedade humana a ponto dessa violência se infiltrar nos lares, perdendo-se todos os parâmetros. E em todas as situações sobra para nós, pobres mortais, somente a impotência!
Está certo que a informações estão chegando mais rapidamente para nós, mas o que eu vejo são as crises dos papéis sociais gerando a crise moral e ética na sociedade (que já estava frágil), trazendo assim, cada vez mais em maior proporção, a violência para dentro dos lares e em todos os ambientes habitados pelos humanos.
As relações humanas têm como pacto principal o Amor. Seja este Amor filial, fraternal, parental ou carnal. É o amor que aproxima as pessoas. A aceitação e a admiração são expressões deste Amor. Quando nos sentimos aceitos e admirados por alguém, nos sentimos amados e quando ainda por cima isso é recíproco, mais do que nunca queremos manter esta relação.
O grande problema é que só amor (o que já não é pouco numa relação) não basta, porque em nome deste amor que é dado, muitas vezes são exigidas coisas que não são do direito e nem legitimadas pelo Amor. Percebemos as invasões dos espaços do outro em nome do Amor, sentimos o desrespeito em nome deste Amor. Portanto, além de Amor, uma relação não sobrevive sem o Respeito. É fundamental respeitar a individualidade do outro, bem como nos respeitar; respeitar nossa individualidade na relação com o outro.
Outro ingrediente imprescindível em qualquer relação é a Confiança. Sem confiança não investimos, nos envolvemos e não nos entregamos em nada. Sem confiança a relação fica estabelecida na superficialidade, sem nunca saber, realmente, com quem estamos e quem está conosco não sabe, de verdade, quem somos.Mas, para que haja respeito e confiança numa relação é absolutamente fundamental que haja Educação. E o que é Educação?
Eu chamo de se ter Educação quando a pessoa ter um mínimo de consciência de seus limites – direitos e deveres - enquanto indivíduo, em toda e qualquer situação de vida – ou seja, noções básicas de ética!
Hoje é justamente pela deficiência de parâmetros claros e definidos de tais limites, que as pessoas estão muito mais autocentradas em suas próprias necessidades. Não estão conseguindo pensar no outro, nas necessidades do outro e, conseqüentemente, não confiam que o outro genuinamente possa fazê-lo também.
Estão todos vivendo pelo “princípio do prazer”, como diria Freud; porque lidar com a realidade realmente não é fácil. As pessoas querem ter tudo, mas não querem dar nada. Pararam na fase dos três anos de idade: querem viver e experimentar tudo o que a vida se lhes apresenta, mas não querem assumir nenhum compromisso e responsabilidade sobre isso, como qualquer adulto saudável faria. Isto é princípio do prazer. Viver o bem bom da vida sem qualquer comprometimento de sua parte.
Está faltando – coletivamente – maturidade para viver a vida realisticamente. Falta o desenvolvimento de valores morais e éticos na relação com a vida e, conseqüentemente, na relação com as pessoas.
A vida e as relações humanas são feitas de direitos e deveres, mas se não existe um certo grau de desenvolvimento de valores éticos e morais – que eu chamo de educação (porque é na educação recebida que se formam tais valores) – acaba por estabelecer-se contatos e relacionamentos pautados apenas nos “meus direitos” e totalmente inconsciente dos “meus deveres” – como qualquer criança de três anos de idade!
Por isto é importante desenvolver a consciência de onde termina você e onde começa o outro. Mas quais são a suas necessidades e quais são as necessidades do outro dentro das relações?
Ter “noção” de ética e moral é o princípio sine qua non para se estabelecer qualquer relação.Eu entendo por Ética como conduta de vida, onde sempre precisa estar presente um pensamento básico: “Tudo que me faz mal, que me incomoda, que me deixa infeliz provavelmente poderá também afetar o outro e fazer-lhe mal, incomodá-lo e deixa-lo infeliz”.
Um exemplo claro é: se eu tenho um relacionamento fixo com alguém e se me sinto atraído por outro alguém (o que é absolutamente natural que aconteça!), como devo proceder? Devo exercer minha atração e me envolver em paralelo com esta outra pessoa?
Caso eu o faça, dentro dos parâmetros éticos – baseado no pacto de confiança e respeito dentro da relação (o que lhe seria próprio) – estaria traindo a confiança do parceiro fixo.
Se fosse o contrário: se meu parceiro fixo atuasse sua atração em paralelo à sua relação comigo, como eu me sentiria? O problema é que a maioria das pessoas não faz este tipo de exercício ético: se colocar no lugar do outro.
E é isto que eu chamo de conduta ética: é saber que o que me atinge como indivíduo e ser humano poderá atingir também o outro, como indivíduo e ser humano.
Independentemente do que a convenção social determina como modelo de atuação para os papéis que representamos (não podemos nos esquecer que a sociedade é formada por cada um de nós – portanto, nós é que verdadeiramente determinamos os modelos dos papéis sociais a desempenhar), jamais devemos nos esquecer de que a base para a relação indivíduo/indivíduo é a ética e a moral, que tem como princípio básico o respeito e a confiança. Caso contrário, o que teremos é uma banalização da vida e, conseqüentemente, das relações que se tornam cada vez mais descartáveis. Todos se tornam descartáveis porque falta amor e respeito pela vida, bem como falta confiança de que a vida proverá.
É importante que cada um de nós faça a sua parte para sair da impotência na qual socialmente entramos com a crise que se instalou: resgatar finalmente o Amor e a Ética, em princípio na nossa própria vida e depois estender este “resgate” em todas as nossas relações. Precisamos entender que, realmente, depende única e exclusivamente de cada indivíduo expressar Amor e Ética na própria vida, nas relações pessoais e na sociedade humana de modo geral.
*Maria Aparecida Diniz Bressani é psicóloga e psicoterapeuta Junguiana, especializada em atendimento individual de jovens e adultos, em seu consultório em São Paulo.
Email: mariahbressani@yahoo.com.br
Original em:

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Ética e Educação


A medida ou justa meio nos sete sábios
Antes do surgimento da filosofia moral, as convicções morais dos gregos não eram fundadas e justificadas conceitualmente, como os filósofos farão posteriormente. As normas morais eram apenas colhidas e afirmadas intuitivamente. O mapa dessa sabedoria moral, antes do surgimento da filosofia, seja no seu aspecto positivo, seja no seu aspecto negativo, encontramo-lo nos sete sábios gregos, que funcionam como marco do momento em que emerge esse interesse moral.
Por volta do século V, os gregos já falavam da importância da ação que leva em conta uma medida. O homem grego, que valorizou a razão de tal modo que ela passou a ter status de soberania na vida, impôs-lhe também uma ponderação. A seguir serão apresentadas algumas das máximas, de cada um dos sete sábios, que tratam do conceito de medida em suas máximas morais.
Começando por Tales de Mileto (625-545 a.C.), ele foi um dos primeiros pensadores gregos que utilizou a medida como reguladora do comportamento. Em uma de suas afirmações, diz: "não embelezes tua aparência, mas sê belo no que fazes"[1], ou seja, a aparência estética não é mais importante do que a ação justa. Por isso, se a ação for segundo a justa medida será então, uma bela ação.
Assim, agir de modo equilibrado acaba por evitar a intemperança, pois segundo Tales "danosa é a intemperança"[2] porque conduz à desmedida no trato das paixões. Por isso, diz Tales, "usa da medida",[3] pois ela garante o bem estar psíquico do homem. Portanto, o indivíduo realmente comprometido com a ação justa está atento ao uso equilibrado da racionalidade, conduzindo-o a uma vida bela.
Já outro sábio, Bias (século VI a.C.), afirma que ao usarmos da palavra é preciso aguardar uma oportunidade adequada, se se pretende proporcionar algum saber. Portanto, diz Bias, "fala oportunamente"[4] paraque se possa verificar que a intervenção ocorre com o intuito de auxiliar na elaboração de um saber ponderado.
Por tudo isso, a dedicação é fundamental para que se possa atingir uma determinada capacidade de ação, ou seja, agir de modo justo – segundo uma justa medida.
Dessa forma, o uso da medida garante que a ação seja virtuosa.A atitude verdadeiramente moderada utiliza da justa medida para tomar uma decisão, em cada caso, de maneira independente. Portanto, segundo outro dos sete sábios, Pítaco (600 a.C.), "cultiva a piedade, a educação, a sabedoria, a prudência, a vontade, a confiança, a experiência, a habilidade, a amizade, a solicitude, o cuidado da casa, a arte"[5].
Assim, cultivar essas virtudes permite um estreitamento do indivíduo com o uso da justa aplicação das ações. Com isso, diz Bias, com aplicação terás memória; com oportunidade, precaução; com caráter, nobreza da alma; com fadiga, temperança; com temor, piedade; com riqueza, amizade; com discurso, persuasão; com ciência, compostura; com fama, harmonia.[6]
Logo, indica todo esforço para que se atinja um nível de entendimento tal que a reflexão não seja um mero discordar por simples paixões pessoais.
O sábio Cleóbulo, na sua máxima de número 1, diz "ótima é a medida", que pode ser entendida conforme a máxima de número 3, como aquilo que "está bem no corpo e na alma". Todas as nossas ações devem considerar a totalidade do nosso ser, não privilegiandonenhuma das dimensões humanas – corpo ou alma –, em detrimento uma da outra. Por exemplo, para que não aconteça de agirmos em detrimento da alma considerando e buscando atender apenas aos desejos do corpo, ele diz na sua máxima de número 10, ser preciso "dominar o prazer", isso implica evitar a desmedida. Sendo que estas máximas devem nortear a nossa conduta em todas as circunstâncias da vida, conforme diz Cleóbulo na de número 20: "não te ensoberbeças quando as coisas são favoráveis e não te abatas quando há dificuldades". Da mesma forma diz o sábio Periandro na de número 8, "se tens sucesso, sê comedido, se tens insucesso, sê sábio". Em outras palavras, use sempre de equilíbrio, ou seja, de boa medida.
Sólon, outro dos sete sábios, em uma das suas máximas diz, "nada em demasia", deixando clara a relação com medida ou justo meio, com isso ele nos diz para não realizarmos nada em excesso, ou seja, temos de saber agir e usufruir das coisas com moderação e parcimônia. Estendendo a aplicação dessas máximas também às relações humanas, ele diz em sua máxima de número 9: "não faças amizades apressadamente e não interrompas intempestivamente as que fizeste". Em outras palavras, ele nos diz para não termos pressa em estabelecer as nossas relações, nem ao rompê-las quando não nos convierem.
Por fim, o sábio Quílon, em sua máxima de número 1, afirma, "conhece-te a ti mesmo", demonstrando que conhecendo a nós mesmos poderemos controlar melhor nossas paixões, e realizar a máxima de número 15, que diz, "domina o impulso", pois se me conheço, posso dominar meus impulsos e paixões, optando pelo justo meio no momento de deliberar sobre como agir..
Essas sentenças dos sete sábios – e outras que não foram apresentadas por não haver relação direta com o conceito de medida – são consideradas como um mapa, exatamente porque mostram claramente as características e os limites da reflexão moral pré-filosófica. No entanto, segundo Reale7, embora sendo fruto de longa experiência e reflexão, quando consideradas isoladamente, não são sustentadas por um princípio que as justifique. Estão aquém da filosofia moral, uma vez que não surgiram de uma reflexão filosófica acerca do homem, tampouco provam sistematicamente uma tábua de valores tradicionais, nem teoricamente a sua consistência.
[1]GIOVANI, R. História da Filosofia Antiga, Vol. I, p. 184.
[2]Idem, p. 184.
[3]Idem, p.184.
[4]Idem. p.185.
[5]Idem. p. 185.
[6]Idem. p.185.
7Idem. P. 186
Por Robson Stigar no original:

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Filhos – Manual do proprietário


Certa vez, participando de um encontro, o palestrante fez a seguinte pergunta para uma plateia de pais, todos com mais de 40 anos: Quem dos presentes obedecia aos pais só com um olhar? Absolutamente todos ergueram as mãos. Em seguida veio outra pergunta
por Denisa Puggina*
Quantos dos que levantaram as mãos têm filhos que fazem a mesma coisa? Imobilidade geral e algumas risadas.
Fomos criados com autoritarismo, o que não tem mais espaço atualmente. Mas, hoje, nos perdemos no exercício da autoridade.
Esperamos um redentor que nos console, tranquilize e absolva perante uma realidade que nos entorpece. Procuramos atabalhoadamente a solução sem buscar a compreensão do problema.
Paralisados pelo medo, fazemos o que não devemos: transferimos nossa responsabilidade de educadores para a escola. Buscamos para nossos filhos uma espécie de assistência técnica, como fazemos com os automóveis. Vã tentativa de justificar nossa incompetência.
Filho não nasce com Manual de Proprietário, infelizmente. Precisamos criar uma ordem moral e íntegra dentro de nós, que transformada em ação, sirva de exemplo. Nossos filhos são muito observadores e percebem com facilidade quando pregamos uma coisa e fazemos outra. Nossa incoerência é devastadora quando pretendemos educar.
Se nosso objetivo é ser exemplo, não precisamos de professor, guia espiritual, bafômetro, ou qualquer outro instrumento externo. Ao compreendermos nossa incongruência entre o pensar e agir, não estaremos resolvendo apenas nossos próprios desafios, mas ajudando também a solução dos problemas sociais.
Ouvimos muitas vezes pais dizendo que são “amigos” dos filhos. Nossos filhos não querem que sejamos seus amigos, eles já os têm. Querem que sejamos seus pais, seus educadores. Porque amor de pai é diferente. Tem que sinalizar o certo e o errado, não pode ser complacente, tem que dar colo e castigo, alimento para o corpo e para o espírito. Pai sofre junto, faz curativo, fica acordado de madrugada até ouvir o bendito barulho da chave. Pai olha boletim, vai a reunião na escola, fica orgulhoso com o sucesso e triste com o fracasso. Que amigo faz isso?
As férias estão aí. Permaneceremos mais tempo ao lado de nossos filhos. Aproveitemos para resgatar o que perdemos durante a pressa do ano que terminou. Sem regras e sem condicionamentos, porque cada filho tem sua própria história, apenas escutando nosso coração, conheceremos a verdade. E, na verdade, pura e íntegra está a arte de educar que deixa de ser tarefa para se tornar missão.
*Denisa Puggina é cirurgiã-dentista
Fonte: Zero Hora, Porto Alegre, RS - 05 01 2009
.

domingo, 16 de novembro de 2008

Um pensador da ética

Por Renato Janine Ribeiro
Num dia de dezembro de 1513, um homem escreve a um amigo. Está no campo, banido. Foi preso e torturado. Mas não se queixa. Conta que passa o dia com os camponeses, gritando, jogando. À noite, porém, troca de roupa. Veste os melhores trajes. Lê os autores antigos e, espanto!, dialoga com eles. Ouve suas opiniões, suas idéias. (Essa passagem é sempre citada, quando se quer explicar a Renascença). Quase no final, informa que gastou algumas semanas escrevendo um livrinho, De principatibus (Dos principados), "onde me aprofundo tanto quanto posso nas cogitações desse tema...".
Gastou nisso umas poucas semanas, que definirão para a posteridade o seu nome – Nicolau Maquiavel ou, em italiano, Niccolò Machiavelli. A elas Maquiavel deverá a glória: seu nome gerará um adjetivo que todos conhecem. De uns trinta grandes filósofos, apenas dois – ele e Platão – chegaram a tanto. Mesmo quem nunca os leu tem noção do que é amor platônico ou ação maquiavélica. Não importa que nós, professores de filosofia, provemos que os adjetivos convêm mal aos dois filósofos. Eles pegaram. O renome de Maquiavel é maior que ele próprio.
Mas é um mau renome, uma má fama, infâmia. O Príncipe foi lido, bem cedo, como um livro de conselhos aos governantes, para quem os fins justificariam os meios (essa frase, aliás, não é de Maquiavel). Ele defenderia o despotismo e a amoralidade dos príncipes. Há aqui, porém, um problema. Maquiavel escreveu O Príncipe de um jato só, enquanto se dedicou vários anos a outro projeto – os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, um longo comentário ao historiador de Roma antiga.
Ora, os Discursos são uma obra republicana. E, se Maquiavel foi torturado a mando dos Médici, que acabavam de retomar Florença, isso se deveu a ter sido ele um dos líderes da República florentina. O Maquiavel mais extenso é republicano – e sobre ele temos um livro notável de Newton Bignotto, Maquiavel republicano (1991). Mas talvez o autor d’O Príncipe seja o Maquiavel mais intenso: essas semanas no campo emancipam a política da moral cristã.
Daí, questões sérias. Rousseau, dois séculos e meio depois d’O Príncipe (isto é, a meio caminho entre Maquiavel e nós), sugere: tudo seria uma enorme paródia. Republicano da gema, nosso autor teria contado – como a sério – todo o mal que os reis fazem, para fazer-nos odiá-los. Há um enigma Maquiavel. Ainda maior, porque O Príncipe é talvez a obra filosófica que parece mais fácil de ler. Nenhuma dificuldade para entender cada linha ou página. Só para saber o que, afinal, ele quis dizer.
Maquiavel começa distinguindo repúblicas e monarquias: falará delas. Dos reinos, uns são antigos e outros novos: só tratará dos novos. E, destes, uns foram conquistados por armas próprias e outros, com armas alheias e graças à fortuna (no sentido de sorte) – interessam-lhe estes. Como um novo governante, que não se beneficia da opinião favorável que a idade dá a um regime, pode conseguir ser aceito por seu povo? eis a questão. Isto é: como passar da força bruta ou da violência ao poder, que depende do consentimento dos dominados.
E com isso Maquiavel é um dos raros pensadores da política a pensar, não só o exercício, mas a tomada, do poder – não a continuidade, mas a novidade. Não é fortuito que o marxista italiano Antonio Gramsci tenha escrito sobre ele: Maquiavel pode ser revolucionário.
Todo governante procura "conservar o [seu] estado". Quer dizer seu estado de governante, a condição de quem manda. Mas daí brota outro sentido, que surge com Maquiavel: o Estado que o príncipe governa. E como o conservará? Não há receituário. Aqui está o erro de quem lê, n’O Príncipe, regras a aplicar. Pois o que ele destaca na política (ou aquilo a que seus leitores recentes se mostram mais atentos) é justamente o que exige argúcia e invenção!
Diz ele que deseja escrever coisa que preste, útil; por isso não tratará do Estado como deve ser mas como é; nada melhor, para que o governante planeje bem suas ações. A ação deliberada, planejada, eficaz se dá no plano do que ele chama de virtù e que nada tem a ver com a virtude, no sentido cristão ou moral. Mas ninguém realiza todos os seus planos. Metade dos resultados de nossas ações, diz, se deve à virtù, metade à fortuna.
Uma forte convicção medieval era que o governante deveria seguir a moral cristã. Era essa a chave do bem governar. Mas Maquiavel mostra, usando a história e a experiência, que sempre venceu quem pensou mais no êxito do que na moral ou na salvação da alma. Nem por isso devemos ser cruéis de propósito: ele recomenda praticar o bem sempre que possível, o mal quando necessário.
Só que o governante não tem garantia de sucesso. Este sempre é incerto. Um homem privado pode, se respeitar leis e regras, vencer na vida; vive no quadro de um sistema que premia e pune; mas um governante, que não tem rede a protegê-lo, não tem segurança disso.
Lembremos o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele falou muito na ética da responsabilidade, conceito que Max Weber cunhou para dar conta do que Maquiavel iniciara. Teríamos por um lado a ética de princípios ou valores, e por outro a que leva em conta os efeitos previsíveis da ação. O homem privado poderia dar-se ao luxo de seguir os princípios, em sua pureza.
Já o homem público precisa pautar-se pela ética da responsabilidade, insistia FHC, citando Weber (teve a cautela de não citar Maquiavel). Esse foi um ponto de debate no governo passado, com parte da oposição atacando o presidente em nome de um discurso moral. Subentendia-se que a ética da responsabilidade fosse uma ética com desconto, uma ética enfraquecida, até mesmo uma não-ética. Mas ela não é isso.
Se o subtexto de FHC era Maquiavel, não era amoral. A melhor bibliografia atual repudia a imagem de um Maquiavel anti-ético. Destaquemos o livro de Claude Lefort, comentado adiante, que precisaria ser traduzido. Ou o livro utilíssimo de Quentin Skinner, Maquiavel, infelizmente esgotado (Brasiliense), ou ainda duas passagens de seu Fundações do pensamento político moderno (Companhia das Letras).
Dois brilhantes textos mais curtos valorizam a ética de Maquiavel. Isaiah Berlin, em "A originalidade de Maquiavel" (in Estudos sobre a humanidade, Companhia das Letras), diz que na obra dele não se opõem a ética e uma política sem ética – mas duas éticas. Uma é cristã, preza a salvação da alma. Outra – a do Príncipe – é pagã e valoriza a pólis, a cidade, este mundo.
Mas o grande pequeno artigo é a "Nota sobre Maquiavel", de Merleau-Ponty (in Signos, Martins Fontes). Diz ele que uma bondade "incapaz de dureza" (a ética dos princípios) não é verdadeira, nem sequer para o indivíduo – e que O Príncipe encarna "algumas das condições de todo humanismo sério" e, mais que isso, "a regra de uma verdadeira moral". Esta exige levarmos em conta as conseqüências prováveis de nossos atos. De nada vale ficar nas boas intenções. Maquiavel terá lançado as bases da ética de nossos tempos. Merleau-Ponty assim efetua uma enorme reviravolta, que faz o filósofo mais mal falado de todos – e cujo prenome gerou em inglês um apelido para o diabo, "Old Nick" – se tornar um possível grande pensador ético.
Talvez isto signifique o seguinte: na Idade Média, o quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto do súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava isso para fazer um bom rei ou um fiel cristão. Maquiavel mostra que o príncipe não está mais submetido – nem protegido – por esse quadro. É essa insegurança que lhe dá liberdade. Ninguém é livre sem ansiedade. Mas hoje temos um mundo em que também se desfizeram os quadros de referência que protegiam – e prendiam – os cidadãos. Não só o príncipe, mas todos nós.
Se, na reflexão de FHC, a vida pública é diferente da vida privada, o que vemos hoje – e disso se aperceberam os comentadores recentes de Maquiavel – é que a vida privada tomou cores que eram da vida pública. O ex-presidente também errou, ao separá-las. Pois a vida privada igualmente se tornou insegura: casamentos, empregos e até profissões terminam.
Essa insegurança é maior, mais duradoura e mais inquietante do que a gerada pelo temor do assalto: nenhuma polícia pode superá-la. Por isso, não é verdade que o homem privado possa ignorar a lição d’O Príncipe. Hoje é ele quem mais tem a aprender lendo esse poderoso livro. Porque cada um de nós está, em certa medida, na condição do príncipe de Maquiavel: com mais liberdade do que nunca antes, mas também mais inseguro.
Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na USP e curador deste dossiê, é autor de A sociedade contra o social (Companhia das Letras), Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu tempo (Ed. UFMG) e de A universidade e a vida atual (Campus), entre outras obras.
.

sábado, 15 de novembro de 2008

O bem e o mal e as virtudes e vícios segundo Platão

As pessoas podem debater assuntos como a moral e a ética de pelo menos dois modos: com sua experiência própria, obtida no cotidiano, e também a partir do ponto de vista filosófico. O saber prático que acumulamos no dia-a-dia permite que todas as pessoas tenham condições de falar e construir um pensamento a respeito da ética. Esse pensamento formado no cotidiano é fundamental para o equilíbrio de toda e qualquer sociedade.
Quando queremos entender mais profundamente a questão da ética podemos recorrer aos filósofos. A Ética é um ramo de estudo da Filosofia. Para compreender as idéias éticas e morais do presente vamos entrar no pensamento de alguns filósofos. Vamos tentar entender seu código-fonte. Para isso, precisamos de atenção e ir além da superficialidade.
Vamos falar um pouco da série Star Wars, dirigida por George Lucas. O filme fala da luta permanente entre o bem e o mal. O bem é representado pelos cavaleiros Jedi, e a maior expressão do mal é Lord Vader ou Darth Vader. O mal está presente em todo o universo? O que é o mal para quem escreveu a ficção Star Wars? O mal é um dos lados da força. A força é a energia vital do universo e ela se manifesta de duas formas, a boa e a má. Por isso, em Star Wars, o jovem Anakin Skywalker virou o terrível e temível Darth Vader. Esta posição tem um fundamento filosófico chamado de maniqueísmo. O maniqueísmo é uma doutrina simplista que divide o mundo em dois lados, o bem e o mal. No filme em questão, o bem e o mal travam uma luta incessante.
Uma questão importante: em Star Wars, as coisas são um pouco mais complexas, pois o lado escuro da força disputa as pessoas o tempo todo. Algumas são ganhas pelo Dark Side. Outras não. Depois veremos qual seria a explicação disso, mas agora o importante é discutirmos o que é o bem e o mal.
Atenção para duas perguntas: no filme Star Wars, o mal é real? O que é o mal? A resposta parece fácil, mas não é. Ali, o mal existe e está em todos os lados. Os cavaleiros Sith são os guardiões avançados do mal. Aqueles que usam espadas de luz vermelha são os Sith. Já os Jedi são os cavaleiros que buscam manter o universo com o equilíbrio no lado bom da força. Mas o mal existe e é difícil de definir. Ele é o oposto do bem. Nesse filme, ele é efetivamente real e seu impacto é destruidor, desorganizador e implacável. Em geral, o mal é impiedoso como Darth Vader e sua Estrela da Morte.
Aqui vamos aprofundar nossa reflexão. Vamos abrir as fontes e buscar a origem da idéia de mal como real. Ela não está na religião católica. Sabe por quê? O catolicismo foi muito influenciado pelas idéias do filósofo grego Platão, nascido 428 a.C.
Para Platão, o mal não é real. O mal acontece no universo como a ausência do bem. Não dá para estudar ética sem discutir o que é o bem, e, portanto, o que vem a ser o mal. Não se esqueça de que estamos discutindo isto do ponto de vista filosófico para podermos ir mais longe. Vamos entender um pouco as idéias de Platão, depois voltamos a Star Wars.
O filósofo inglês Mark Rowlands escreveu uma passagem genial e muito fácil de entender:
"Platão - um nerd de matemática confesso - acreditava que a matemática espelhava a estrutura verdadeira da realidade, ou algo assim, e por isso vamos usar um exemplo que agradaria a ele. Suponha que temos alguns círculos desenhados em papel. Alguns deles serão versões melhores de círculos que os outros. Alguns serão mais ovais que circulares, por exemplo. Mas podemos distinguir claramente quais círculos oferecem os melhores exemplos de círculos e quais oferecem os piores. Como podemos ser capazes disso?""
"De uma maneira ou de outra, devemos ter algum tipo base de comparação. Se podemos distinguir os bons exemplos de círculo dos maus, e todos os graus intermediários de bom e mau, então devemos ter alguma idéia de como um círculo perfeito deve ser. Se não tivéssemos tal idéia, então como poderíamos separar os bons exemplos dos maus, os superiores dos inferiores? Então vamos admitir que devemos ter alguma idéia que nos permite distinguir as boas versões de círculo das más. De onde tiramos esta idéia? A resposta de Platão é que não tiramos isto de lugar algum no mundo físico."
"De acordo com Platão, nós a tiramos de um lugar fora do mundo físico. Há que existir, ele conclui, um reino não-físico do ser, e neste reino residem coisas como círculos perfeitos. Não apenas círculos perfeitos, tudo perfeito. Neste reino não-físico existe um homem perfeito, uma mulher perfeita, um cavalo perfeito, um triângulo perfeito, uma nuvem perfeita, uma espada (ou sabre de luz) perfeita e assim por diante. A estes exemplos perfeitos de coisas Platão se referia como FORMAS, e a este reino não-físico que os contém, ele chamava MUNDO DAS FORMAS."
Antes de continuarmos, repare que Platão é considerado um FILÓSOFO IDEALISTA exatamente porque ele defendia que as coisas nascem das idéias. Ao contrário dos MATERIALISTAS que dizem ser as idéias fruto do mundo e não o mundo fruto das idéias. E o que isto tem a ver com a questão do bem e do mal? Para responder isto, vamos avançar um pouco mais na explicação do Prof. Mark Rowlands:
"Estas formas eram, de acordo com Platão, arrumadas hierarquicamente, e no topo desta hierarquia estava aquilo que Platão chamava em si de FORMA DO BEM, o que podemos chamar de BONDADE EM SI. O conceito por trás disso é bem similar ao caso dos círculos. Várias pessoas, ações, regras e instituições são, pelo menos aos nossos olhos, boas. Algumas dessas coisas são más. E no meio existem várias graduações de bom e mau. Mas mesmo as coisas que consideramos boas não são perfeitamente boas. Não importa o quão boa uma pessoa seja, por exemplo, ela sempre poderia ser melhor. (...) Assim sendo, além do mundo físico ordinário (normal), PLATÃO DEFENDEU A EXISTÊNCIA DE UM MUNDO NÃO-FÍSICO DAS FORMAS. Entretanto, de acordo com Platão, não só este mundo físico das formas existe, mas ele é, de fato, mais real que o mundo físico ordinário."
Ética pode ser ensinada? Ou o mal presente na sociedade pode fazer as pessoas tornarem-se eternas "Darth Vader"? Independentemente dos pontos de vista, para formarmos um melhor juízo disso, precisamos conhecer mais e melhor o pensamento de quem se dedicou ao terreno da ética. Vamos voltar à questão das virtudes e dos vícios.

Para Aristóteles, as virtudes e os vícios podem ser definidos pelo critério do excesso, da falta e da moderação. O vício sempre seria uma conduta ou um sentimento excessivo ou deficiente. Já a virtude seria um sentimento ou conduta moderados.

Para entendermos bem esta questão, vamos usar dois exemplos: para Aristóteles, CORAGEM é uma virtude. Já a TEMERIDADE (podemos chamar de IMPRUDÊNCIA diante de qualquer perigo) é um vício por excesso e a COVARDIA seria um vício por deficiência. Para Aristóteles, a VAIDADE é um vício por excesso, e a MODÉSTIA, um vício por deficiência. Aristóteles vê no RESPEITO PRÓPRIO a virtude, diante da vaidade ou modéstia.

Sobre a boa sorte de alguém, Aristóteles via que os homens podiam ter sentimentos. Quando estes sentimentos eram de moderação, tínhamos a JUSTA APRECIAÇÃO da sorte do nosso conhecido. Mas também nosso sentimento podia descambar para o vício por excesso e tornar-se INVEJA.

Um hacker precisa ter vontade de conhecer e de compartilhar seu conhecimento. Um hacker que é superficial naquilo que se propõe a fazer ou entender está submetido ao vício da preguiça. O pior tipo de preguiça é a preguiça mental. Quando temos um grande problema pela frente, a preguiça sempre aparece como a droga para um viciado. ROMPER COM A PREGUIÇA DE APRENDER é um dos pilares fundamentais da ÉTICA HACKER.

Vamos continuar buscando resgatar um outro aspecto muito importante de nosso debate sobre o bem e o mal, sobre vícios e virtudes. Para isso, vamos recorrer a um importante filósofo chamado Baruch Spinoza (1632-1677), nascido em Amsterdã, na Holanda. Spinoza era de uma família tradicional judia de origem portuguesa. Sua família emigrou porque os judeus estavam sendo perseguidos em Portugal. Spinoza tinha uma outra visão sobre vícios e virtudes. Ela estava ligada também ao controle das paixões e dos sentimentos. Para entendermos um pouco sobre isto, vamos ler um trecho do livro 'Convite à Filosofia', da professora Marilena Chaui:

"Para Spinoza, somos seres naturalmente passionais, porque sofremos a ação de causas exteriores a nós. Em outras palavras, ser passional é ser passivo, deixando-nos dominar e conduzir por forças exteriores ao nosso corpo e à nossa alma. Ora, por natureza, vivemos rodeados por outros seres, mais fortes do que nós, que agem sobre nós. Por isso, as paixões não são boas, nem más, são naturais. Três são as paixões originais: alegria, tristeza e desejo. As demais derivam-se destas."

"Assim, da alegria nascem o amor, a devoção, a esperança, a segurança, o contentamento, a misericórdia, a glória. Da tristeza surgem o ódio, a inveja, o orgulho, o arrependimento, a modéstia, o medo, o desespero, o pudor. Do desejo provêm a gratidão, a cólera, a crueldade, a ambição, o temor, a ousadia, a luxúria, a avareza."

"Uma paixão triste é aquela que diminui a capacidade de ser e agir de nosso corpo e de nossa alma; ao contrário, uma paixão alegre aumenta a capacidade de existir e agir de nosso corpo e de nossa alma. No caso do desejo, podemos ter paixões tristes (como a crueldade, a ambição, a avareza) ou alegres (como a gratidão e a ousadia)."
Veja agora como Spinoza amarra as suas idéias:

"Que é o VÍCIO? Submeter-se às paixões, deixando-se governar pelas causas externas. Que é a VIRTUDE? Ser a causa interna de nossos sentimentos, atos e pensamentos. Ou seja, passar da passividade (submissão a causas externas) à atividade (ser causa interna). A virtude é, pois, passar da paixão à ação, tornar-se causa ativa interna de nossa existência, atos e pensamentos. As paixões e desejos tristes nos enfraquecem e nos tornam cada vez mais passivos. As paixões e desejos alegres nos fortalecem e nos preparam para PASSAR DA PASSIVIDADE À ATIVIDADE. Como sucumbimos ao vício? Deixando-nos dominar pelas paixões tristes e pelas desejantes nascidas da tristeza. O vício não é um mal, é fraqueza para existir, agir e pensar. Como passamos da paixão à ação ou à virtude? Transformando as paixões alegres e as desejantes nascidas da alegria em atividades de que somos a causa. A virtude não é um bem, é a força para ser e agir autonomamente."

O texto foi longo, mas é extremamente claro. Vamos retomar nosso caminho. Os filósofos explicam de vários modos a questão da ética e do que vem a ser o bem e o mal. O importante é sabermos que não existe sociedade nem agrupamento humano que possa existir sem uma moral e uma ética. O professor Vanderlei de Barros Rosas afirmou que alguns filósofos e pensadores diferenciam ética e moral de vários modos:

"Ética é princípio, moral são aspectos de condutas específicas,Ética é permanente, moral é temporal,Ética é universal, moral é cultural,Ética é regra, moral é conduta da regra,Ética é teoria, moral é prática."

Para encerrar, vamos ler o trecho de um texto do professor Renato Janine Ribeiro, chamado "Ser Ético, Ser Herói", disponível integralmente no site oficial dele.
"Ser ético é mostrar-se capaz de heroísmo. Vale a pena então irmos, deste filme recente (Casa da Rússia), baseado num livro de John Le Carré, para a tragédia grega Antígona, que Sófocles escreveu no século V antes de Cristo. Penso que toda reflexão sobre a ética deve começar por ela.

Antígona é filha de Édipo. Dois de seus irmãos lutam pelo poder, e ambos morrem. O trono fica então com seu tio, Creonte, que manda enterrar um dos sobrinhos com todas as honras - e deixar o corpo do outro aos abutres. Antígona não aceita isso. Participa do enterro solene de um irmão e depois sepulta, com os ritos religiosos, o outro, o proscrito.

O rei fica furioso. Está convencido de que é uma conspiração contra ele. Manda descobrir quem violou suas ordens. Ao saber que é a sobrinha, tenta poupá-la: se ela negar que foi ela, ou se pedir desculpas, enfim, ele lhe dá todas as saídas - sob uma condição só, de que ela negue o seu ato. Antígona se recusa e é executada.

Essa história é exemplar. Ela mostra que há um conflito latente entre a ética e a lei. Um governante dá ordens. Estas podem ser legítimas ou não. Creonte fez o que não devia, moralmente, mas é ele quem manda. A lei está com ele. Neste caso, o que fazer?

Vou passar a um caso relativamente recente. Um tempo atrás, eu estava na França, quando um homem morreu na calçada, em frente de uma farmácia, sem que ninguém o acudisse. O farmacêutico explicou: se tocasse no outro, se tornaria responsável por ele. Só um médico poderia fazê-lo. Descobriu-se, porém, que bastaria um remédio simples para salvar o rapaz da morte. O que fazer?
Assisti então a um amplo debate. Foi sugerida uma mudança na lei, para que as pessoas pudessem acudir a seus próximos sem serem processadas, quando agissem de boa fé. Também se propôs um sistema de atendimento mais rápido das emergências. Mas quem, a meu ver, resolveu a questão foi um jornalista, que disse mais ou menos o seguinte: - Se precisarmos de uma lei que autorize as pessoas a agirem humanamente, a socorrerem os outros sem pensar nos castigos e riscos que correm, não estará tudo perdido? Porque nunca as leis vão prever todos os casos. Sempre, para alguém agir bem, de maneira ética, em solidariedade com os outros, haverá um terreno incerto, um espaço que pode até ser ilegal. - Precisamos de uma lei nos permitindo ser decentes? continuou ele. Ou deveremos estar preparados para correr os riscos, até mesmo de sermos presos, quando um valor mais alto se erguer, o valor do respeito do outro?
É este o heroísmo de que falava o personagem da Casa da Rússia. É este o heroísmo que Antígona praticou. E ele exige que, às vezes, estejamos dispostos a infringir a própria lei, a desobedecer às regras, quando for em nome de um valor superior. Em nosso mundo, este valor mais elevado pode ser, antes de mais nada, a vida de alguém. Aliás, costuma haver polêmica sobre o chamado "furto por necessidade", quando um esfomeado furta comida para sobreviver: isso não é um crime.
Mas as coisas podem ir mais longe. Maria Rita Kehl elogiou aqui, na semana passada, o líder dos sem-terra João Pedro Stédile. O que vale mais, a lei de propriedade da terra, que perpetua uma exclusão social enorme, ou o direito das pessoas a viver, e acrescento, a viver dignamente? Do ponto de vista ético, é claro que vale mais o direito à vida digna.

Nem sempre foi assim. Um pregador puritano inglês do século 17, Richard Baxter, tem uma frase horrorosa. Na época, enforcava-se quem roubasse um pedaço de pão. Ele justifica isso: a vida dos pobres, explica, não vale grande coisa, ao passo que o atentado à propriedade destruiria os fundamentos da própria sociedade.

Não há consenso a este respeito. Uns defendem os sem-terra, outros os atacam. Mas o que quero levantar aqui é algo mais forte: é que a ética e a lei não coincidem necessariamente. Muitas vezes, ser decente exige romper com a lei. Foi assim sob o nazismo e sob todas as formas de ditadura. É assim também quando a desigualdade ou a injustiça impera.

Aí, sim, o ser humano precisa ser heróico. Porque violar a lei, mesmo que seja por um valor moral relevante, significa sofrer as penas da lei. Numa sociedade decente, imagino que o juiz não mandará para a cadeia quem infringiu as normas legais devido a valores morais mais altos, como os que citei. Mas não há garantia nenhuma disso. Pode ser que a pessoa seja punida, mesmo.

E é importante insistir nisso. O que queremos nós: cidadãos obedientes à lei, a qualquer lei, ou sujeitos éticos, decentes? O ideal é juntar as duas coisas. Mas, na educação, devemos apostar na autonomia, isto é, na formação de pessoas que sejam capazes de decidir por si próprias. O que significa que, em casos raros e extremos, elas tenham a coragem de enfrentar o consenso social e suportar as conseqüências de seus atos.

Isso, para terminar, pode fazer de qualquer um de nós um pequeno herói. O heroísmo não está só nas personagens da mitologia grega ou nos super-heróis da TV. Ele pode estar presente quando cada um de nós enfrenta uma pequena prepotência, em nome de um valor mais alto - desde, claro, que arque com os resultados de sua ação e que além disso lembre que é falível e pode estar errado. Mas é desses pequenos heroísmos pessoais que depende a dignidade humana."

Sérgio Amadeu
Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É professor da pós -graduação da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero.
Autor de várias publicações, entre elas: Exclusão Digital: a miséria na era da informação. Militante do Software Livre.
»
Blog do Sérgio Amadeu
.

Ética, Moral e Direito


Por José Roberto Goldim

É extremamente importante saber diferenciar a Ética da Moral e do Direito. Estas três áreas de conhecimento se distinguem, porém têm grandes vínculos e até mesmo sobreposições.
Tanto a Moral como o Direito baseiam-se em regras que visam estabelecer uma certa previsibilidade para as ações humanas. Ambas, porém, se diferenciam.
A Moral estabelece regras que são assumidas pela pessoa, como uma forma de garantir o seu bem-viver. A Moral independe das fronteiras geográficas e garante uma identidade entre pessoas que sequer se conhecem, mas utilizam este mesmo referencial moral comum.
O Direito busca estabelecer o regramento de uma sociedade delimitada pelas fronteiras do Estado. As leis tem uma base territorial, elas valem apenas para aquela área geográfica onde uma determinada população ou seus delegados vivem. O Direito Civil, que é referencial utilizado no Brasil, baseia-se na lei escrita. A Common Law, dos países anglo-saxões, baseia-se na jurisprudência. As sentenças dadas para cada caso em particular podem servir de base para a argumentação de novos casos. O Direito Civil é mais estático e a Common Law mais dinâmica.
Alguns autores afirmam que o Direito é um sub-conjunto da Moral. Esta perspectiva pode gerar a conclusão de que toda a lei é moralmente aceitável. Inúmeras situações demonstram a existência de conflitos entre a Moral e o Direito. A desobediência civil ocorre quando argumentos morais impedem que uma pessoa acate uma determinada lei. Este é um exemplo de que a Moral e o Direito, apesar de referirem-se a uma mesma sociedade, podem ter perspectivas discordantes.
A Ética é o estudo geral do que é bom ou mau. Um dos objetivos da Ética é a busca de justificativas para as regras propostas pela Moral e pelo Direito. Ela é diferente de ambos - Moral e Direito - pois não estabelece regras. Esta reflexão sobre a ação humana é que a caracteriza.
.

Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática*

Por Jürgen Habermas
Tradução: Márcio Suzuki

Até os dias de hoje, as discussões teóricas sobre a moral são determinadas pelo confronto entre três posições: as argumentações transcorrem entre Aristóteles, Kant e o utilitarismo. Apenas as éticas da compaixão fazem valer um motivo diverso. Outras teorias, mesmo a hegeliana, podem ser entendidas como tentativas de síntese de iniciativas conhecidas. A ética do discurso (Diskursethik), que se põe como tarefa salientar o conteúdo normativo de um uso lingüístico orientado para a compreensão, não é a referida síntese. Ao tentar demonstrar, com os meios da análise da linguagem, que o ponto de vista do julgamento imparcial de questões prático-morais - o ponto de vista moral - surge em geral dos pressupostos pragmáticos inevitáveis da argumentação, ela se filia à tradição fundada pela Crítica da razão prática. Com essa tomada de partido em favor de Kant, ela não adota, porém, aquelas premissas que forçam a ressaltar unilateralmente a iniciativa deontológica, ou seja, excluindo as intuições nas quais, com um certo direito, se concentram as iniciativas concorrentes. No que se segue, importa para mim o direito relativo daqueles três aspectos sob os quais podemos fazer um uso, a cada momento diferençado, da razão prática. Gostaria de mostrar isso pela via de uma análise dos tipos de argumentação a eles correspondentes.
Assim como a ética moderna, a ética clássica parte da questão que se põe ao indivíduo que precisa de orientação, quando ele, numa situação determinada, encontra-se diante de uma tarefa a ser vencida de maneira prática: como devo comportar-me, que devo fazer? Esse "dever" (Sollen) guarda um sentido não-específico enquanto o respectivo problema e o aspecto sob o qual deve ser solucionado não sejam determinados mais de perto. Antes de tudo, gostaria de diferençar o uso da razão prática tendo como fio condutor os modos pragmático, ético e moral de pôr a questão. Sob os aspectos daquilo que é adequado a fins (Zwechnässiges), do bom e do justo, esperam-se, respectivamente, desempenhos diferentes da razão prática. De acordo com eles, altera-se a constelação entre razão e vontade nos discursos pragmáticos, éticos e morais. A formação da vontade individual encontra, por fim, seus limites no fato de abstrair da realidade da vontade alheia. Com os problemas fundamentais de uma formação racional da vontade coletiva entram em jogo os modos de pôr a questão a partir de uma teoria normativa do direito e da política.
I
Problemas práticos impõem-se-nos em diferentes situações. Eles "têm" (müssen) de ser contornados, pois do contrário surgem conseqüências que são importunas mesmo nos casos mais simples. É assim que, por exemplo, "temos de" (müssen) decidir o que fazer quando a bicicleta usada diariamente estraga, quando surgem complicações de saúde, quando falta dinheiro para poder satisfazer determinados desejos. Buscamos, então, fundamentos para uma decisão racional entre diferentes possibilidades de ação frente a uma tarefa que "temos de" (müssen) solucionar, se quisermos alcançar uma meta determinada. As metas também podem, elas mesmas, tornar-se problemáticas, por exemplo, quando um plano para as próximas férias fracassa, repentinamente, ou quando se tem de escolher a profissão. Viajar para a Escandinávia, para Elba ou ficar em casa; visitar cidades orientais, viajar de barco pelo Dordogne ou ficar na praia; iniciar imediatamente um curso universitário ou fazer, primeiro, um curso técnico; tornar-se médico ou profissional em editoração, isso depende, acima de tudo, de nossas preferências e opções que se nos abrem numa dada situação. Uma vez mais buscamos fundamentos para uma decisão racional - desta vez, entre as próprias metas.
Em ambos casos, aquilo que se "deve" (soll) fazer de uma maneira racional é determinado, em parte, por aquilo que se quer: trata-se de uma escolha racional dos meios a partir das metas dadas ou de uma ponderação racional das metas a partir das preferências existentes. Nossa vontade já está estabelecida faticamente por "desejos e valores; ela só está aberta a outras determinações no que concerne a alternativas quanto à escolha dos meios ou quanto à fixação de metas. Trata-se unicamente de técnicas apropriadas, seja para o conserto da bicicleta ou para o tratamento de doenças, seja de estratégia para levantar dinheiro, de programas para o planejamento das férias ou da escolha da profissão. Em casos complexos, "têm-se" (müssen) até de desenvolver estratégias para tomar decisões - e então a razão assegura-se de sua própria conduta e torna-se reflexiva, por exemplo, na figura de uma teoria da escolha racional. Enquanto a pergunta "Que devo fazer?" referir-se a tarefas pragmáticas, as observações e investigações, as comparações e ponderações, que, apoiados em informações empíricas, empreendemos sob a perspectiva da eficiência ou com auxílio de outras regras decisorias, são pertinentes. A reflexão prática transcorre aqui no horizonte da racionalidade de fins (Zweckrationalität), com a meta de encontrar técnicas, estratégias ou programas adequados. Ela leva a recomendações que, em casos simples, têm a forma semântica de imperativos condicionais. Kant fala de regras de habilidade e de conselhos de prudência, de imperativos técnicos e pragmáticos. Eles põem causas e efeitos em relação, segundo preferências de valor e fixação de metas. O sentido imperativo que expressam pode ser entendido como um "dever" (Sollen) relativo. As indicações para a ação dizem o que "se deve" (soll) fazer ou que "se tem" (muss) de fazer em vista de um problema determinado, se se quer realizar determinados valores ou fins. Decerto, se os próprios valores tornam-se problemáticos, a pergunta "Que devo fazer?" aponta além do horizonte da racionalidade de fins.
Em decisões complexas, como, por exemplo, a escolha da profissão, pode-se concluir que não se trata absolutamente de uma questão pragmática. Alguém que queira entrar no ramo editorial pode refletir se é mais adequado a esse fim (zwechnässiger) fazer primeiro um curso técnico ou cursar logo a faculdade; mas quem não sabe exatamente o que quer, está diante de uma situação de todo diferente. Aqui, a escolha da profissão, isto é, da orientação dos estudos, está ligada à questão das inclinações ou daquilo pelo que se interessa, de que tipo de atividade satisfaria a pessoa, etc. Quanto mais radicalmente essa questão se põe, tanto mais ela se exacerba no problema de saber que vida se gostaria de ter, e isso significa: que tipo de pessoa se é e, ao mesmo tempo, se gostaria de ser. Quem, em decisões de importância vital, não sabe o que quer, perguntará por fim quem ele é e quem ele gostaria de ser. Decisões triviais ou fracas sobre a preferência não exigem fundamentação; ninguém pede a si ou a outros justificativas pelas marcas de automóveis ou que tipo de pulôver prefere. Em contrapartida, chamamos, com Charles Taylor, de preferências "fortes" àquelas valorações que não concernem apenas às disposições e inclinações contingentes, mas também à compreensão de si (Selbstverständnis) de uma pessoa, ao tipo de vida que tem, ao caráter; tais valorações estão entrelaçadas com a identidade de cada um. Essa circunstância não empresta apenas um peso às decisões existenciais, mas também um contexto no qual elas são tanto carentes quanto capazes de fundamentação. Decisões de valor grave são tratadas, desde Aristóteles, como questões clínicas (klinisch) do bem viver. Uma decisão ilusória - o relacionamento com um parceiro errado, a escolha equivocada de alternativas profissionais - pode ter como conseqüência uma vida malograda. A razão prática, que neste sentido tem como objetivo não apenas o possível e o que é adequado a fins, mas também o bom, move-se então, se seguimos o uso clássico da linguagem, no âmbito da ética.
Problemas práticos impõem-se-nos em diferentes situações. Eles "têm" (müssen) de ser contornados, pois do contrário surgem conseqüências que são importunas mesmo nos casos mais simples.
Valorações fortes inserem-se no contexto da compreensão de si (Selbstverständnis). O modo como alguém compreende a si mesmo não depende apenas de como ele se descreve, mas também dos modelos pelos quais se empenha. A identidade própria determina-se ao mesmo tempo segundo o modo como alguém se vê e como se gostaria de ver - isto é, tal como alguém se encontra e por que ideais projeta-se a si e a sua vida. Essa compreensão existencial de si é, no fundo, valorativa e tem, como toda valoração, uma cabeça de Jano. Nela estão mesclados estes dois tipos de componentes: os componentes descritivos da gênese da história de vida do eu e os componentes normativos do ideal do eu. Por isso, a elucidação da compreensão de si ou o asseguramento clínico da própria identidade requer um compreender apropriador - a apropriação da história da própria vida como também das tradições e dos contextos de vida que determinaram o processo de formação próprio. Se há ilusões em jogo, essa compreensão hermenêutica de si pode ser aguçada no tipo de reflexão que dissolve auto-ilusões. O tomar consciência crítica (Das kritische Bewusstmachen) da história da vida e de seu contexto formativo não leva a uma compreensão de si, neutra de valores; ao contrário, a descrição de si alcançada de maneira hermenêutica está ligada internamente a uma postura crítica em relação a si mesmo. Uma compreensão de si aprofundada modifica os posicionamentos que suportam ou, pelo menos, implicam um projeto de vida pleno de conteúdo normativo. Assim, as valorações fortes podem ser fundamentadas pela via da compreensão hermenêutica de si.
Será possível decidir com melhores fundamentos entre um curso superior de administração de empresas e uma preparação para teólogo, depois que se tenha tornado claro quem se é e quem se gostaria de ser. Questões éticas são, em geral, respondidas com imperativos incondicionais do seguinte tipo: "Tens de seguir uma profissão que te dê a sensação de ajudar outras pessoas". O sentido imperativo de proposições como esta pode ser entendido como um "dever" (Sollen) que não depende de fins e preferências subjetivas e, no entanto, não é absoluto. O que tu "deves" (sollst) fazer ou "tens de" (musst) fazer possui aqui o sentido de que, a longo prazo e no conjunto, é bom para ti agir dessa maneira. Aristóteles fala, neste contexto, de caminhos para a vida boa e feliz. Valorações fortes orientam-se por uma meta posta como absoluta para mim, vale dizer, pelo Bem Supremo de um modo de vida autárquico, que tem seu valor em si. A questão "Que devo fazer?" muda uma vez mais seu sentido assim que minhas ações afetem os interesses de outros e levem a conflitos que devem ser regulados de modo imparcial, portanto, sob pontos de vista morais. Uma comparação por contraste é instrutiva a respeito dessa nova qualidade que com isso entra em jogo.
Tarefas pragmáticas colocam-se da perspectiva de um agente que parte de suas metas e preferências. Deste ponto de vista, os problemas morais não podem surgir de maneira alguma, porque as outras pessoas têm apenas a importância de meios ou condições restritivas para a realização de um plano de ação respectivo a cada indivíduo. No agir estratégico os participantes supõem que cada um decide de maneira egocêntrica, segundo o critério de seus próprios interesses. Esse conflito pode ser decidido ou contido e posto sob controle, bem como apaziguado por um interesse mútuo. Sem uma mudança radical da perspectiva e da postura, contudo, um conflito interpessoal entre os envolvidos não pode ser percebido como um problema moral. Se posso conseguir o dinheiro que me falta apenas pela via da dissimulação de fatos relevantes, o único que conta entre os pontos de vista pragmáticos é o possível êxito de uma manobra de engodo. Quem, no entanto, problematiza a licitude desse ponto de vista, põe uma outra espécie de questão - ou seja, a questão moral de saber se todos poderiam querer que, em meu lugar, qualquer pessoa agisse segundo a mesma máxima.
No agir estratégico os participantes supõem que cada um decide de maneira egocêntrica, segundo o critério de seus próprios interesses. Esse conflito pode ser decidido ou contido e posto sob controle, bem como apaziguado por um interesse mútuo.
Também as questões éticas não exigem absolutamente uma ruptura completa com a perspectiva egocêntrica; elas referem-se ao télos de minha vida. Deste ponto de vista, outras pessoas, outras histórias de vida e esferas de interesse ganham significado apenas na medida em que estejam unidos ou entrelaçados à minha identidade, à minha história de vida e à minha esfera de interesse no âmbito de nossa forma de vida partilhada intersubjetivamente. Meu processo de formação completa-se num contexto de tradições que partilho com outras pessoas; minha identidade também é marcada pelas identidades coletivas, e a minha história de vida está inserida em contexto de histórias de vida que se entremeiam. Nesta medida, a vida que é boa para mim toca também as formas de vida que nos são comuns. Assim, o etos do indivíduo permanecia, para Aristóteles, referido e adstrito à pólis dos cidadãos. No entanto, as questões éticas têm uma direção inversa das questões morais: a regulação dos conflitos interpessoais entre as ações, os quais resultam de esferas de interesse contraditórias, ainda não é tema aqui. Se eu gostaria de ser alguém que, numa situação aguda de apuros, aplica também uma pequena fraude numa sociedade anônima de seguros, isso não é uma questão moral - pois aqui se trata do respeito que tenho por mim (Selbstachtung) e, eventualmente, do respeito (Achtung) que outros demostram para comigo, mas não do respeito (Respekt) igual para com todos, isto é, do respeito (achtung) simétrico que cada um demostra pela integridade de todas as outras pessoas.
Aproximamo-nos, com efeito, do modo de consideração moral assim que examinamos se nossas máximas são conciliáveis com as máximas de outros. Kant chama de máximas àquelas regras de ação próximas da situação (situationsnah) e mais ou memos triviais pelas quais a prática de um indivíduo se orienta habitualmente. Elas dispensam o autor do esforço cotidiano de tomar decisões e encaixam-se de maneira mais ou menos consistente numa prática de vida na qual se espelham o caráter e o modo de vida. Kant tinha ante os olhos sobretudo as máximas da sociedade burguesa em seus primórdios, que se diferençava segundo a posição profissional. Em geral, as máximas constituem as menores unidades de um entrelaçamento de hábitos praticados, nos quais se concretizam a identidade e o projeto de vida de uma pessoa (ou de um grupo) - elas regulam o curso do dia, o modo de tratamento, o jeito de lidar com problemas, de solucionar conflitos, etc. As máximas constituem o ponto de intersecção entre ética e moral, porque podem ser julgadas simultaneamente sob os pontos de vista ético e moral. A máxima de praticar também uma vez uma manobra de engodo pode não ser boa para mim - isto é, quando não se enquadra à imagem da pessoa que gostaria de ser e que, como tal, quero ser reconhecido. A mesma máxima pode, simultaneamente, ser injusta - isto é, se sua obediência universal não for igualmente boa para todos. Um exame das máximas, ou uma heurística formadora de máximas, que não se deixe guiar pela questão de como quero viver, toma a razão prática de uma maneira diferente da reflexão sobre se de meu ponto de vista uma máxima obedecida universalmente é apropriada a regular nossa vida em comum. Num caso se examina se uma máxima é boa para mim ou adequada à situação; no outro caso, se posso querer que uma máxima seja observada como lei universal para todos.
Kant chama de máximas àquelas regras de ação próximas da situação (situationsnah) e mais ou menos triviais pelas quais a prática de um indivíduo se orienta habitualmente.
Trata-se, lá, de uma reflexão ética; aqui, de uma reflexão de natureza moral - embora ainda num sentido restrito. Porque o resultado dessa reflexão sempre permanece preso à perspectiva pessoal de um determinado indivíduo. Minha perspectiva é determinada por minha compreensão de mim; e, conforme a maneira de como gostaria de viver, uma postura indolente para com manobras de engodo pode também ser aceitável se os outros portam-se da mesma forma em situações comparáveis, tornando-me ocasionalmente vítima de suas manipulações. Mesmo Hobbes conhece a "regra de ouro" segundo a qual uma máxima como esta poderia eventualmente ser justificada. Para ele, é uma "lei natural" que cada um conceda também aos outros os direitos que exige para si. De um teste de universalização levado a efeito de maneira egocêntrica não se segue ainda que uma máxima seja aceita por todos como fio de prumo moral de seu agir. Essa conclusão seria correta apenas se a minha fosse a fortiori congruente com a de todos os outros. Aquilo que de minha perspectiva é igualmente bom para todos residiria de fato no interesse igual de todos apenas se minha identidade e meu projeto de vida refletissem uma forma de vida universalmente válida.
O imperativo categórico, segundo o qual uma máxima é justa apenas se todos podem querer que ela seja seguida por cada um em situações comparáveis, é o primeiro a romper com o egocentrismo da "regra de ouro" ("Não faças a ninguém aquilo que não queres que te façam"). Cada um "tem de" (muss) poder querer que a máxima de nossa ação se torne uma lei universal. Apenas uma máxima capaz de universalização a partir da perspectiva de todos os envolvidos vale como uma norma que pode encontrar assentimento universal e, nesta medida, merece reconhecimento, ou seja, é moralmente impositiva. A questão "Que devo fazer?" é respondida moralmente com referência àquilo que se deve fazer (was man tun soll). Mandamentos, morais (moralische Gebote) são imperativos categóricos ou incondicionados que exprimem normas válidas ou fazem implicitamente referência a elas. Apenas o sentido imperativo desses mandamentos pode ser entendido como um "dever" (Sollen) que não é dependente nem de fins ou preferências subjetivos, nem da meta, para mim absoluta, de uma vida boa, uma vida de êxito ou não-malograda. Em contrapartida, o que se "deve" (soll) fazer ou o que se "tem de" (muss) fazer possui aqui o sentido de que é justo e, portanto, de que é dever (Pflicht) agir desta maneira.
II
Portanto, dependendo de como o problema se põe, a questão "Que devo fazer?" ganha um significado pragmático, ético ou moral. Em todos os casos se trata da fundamentação de decisões entre possibilidades alternativas de ação; as tarefas pragmáticas, porém, exigem um tipo de ação diferente das éticas e morais; as questões que lhe são correspondentes exigem um tipo de resposta diferente das respostas éticas e morais. A ponderação das metas orientada para valores e a ponderação dos meios disponíveis mediante a racionalidade de fins servem à decisão racional sobre como temos de intervir no mundo objetivo para provocar um estado desejado. Neste caso, trata-se essencialmente da elucidação de questões empíricas e de questões de escolha racional. O terminus ad quem de um discurso pragmático correspondente é a recomendação de uma tecnologia adequada ou de um programa exeqüível. Outra coisa é a preparação racional de uma decisão de valor grave que afeta a orientação de toda uma prática de vida. Neste caso, trata-se de uma elucidação hermenêutica da compreensão de si de um indivíduo e da questão clínica do êxito ou não de minha vida. O terminus ad quem de um discurso ético-existencial correspondente é um conselho para a orientação correta na vida, para a realização de um modo pessoal de vida. Uma outra coisa é, por sua vez, o julgamento moral de ações e máximas. Ele serve à elucidação de expectativas legítimas de comportamento em face de conflitos interpessoais que atrapalham o convívio regulado de interesses antagônicos. Neste caso, trata-se da fundamentação e da aplicação de normas que estabelecem deveres e direitos recíprocos. O terminus ad quem de um discurso prático-moral correspondente é uma compreensão sobre a solução justa de um conflito no âmbito do agir regulado por normas.
... dependendo de como o problema se põe, a questão "Que devo fazer?" ganha um significado pragmático, ético ou moral. (...) as questões que lhe são correspondentes exigem um tipo de resposta diferente das respostas éticas e morais.
O uso pragmático, ético e moral da razão prática tende, portanto, a indicações técnicas e estratégicas de ação, a conselhos clínicos e a juízos morais.
Chamamos de razão prática à capacidade (Vennögen) de fundamentar imperativos onde se modifique, conforme a referência à ação ou o tipo de decisões a serem tomadas, não apenas o sentido ilocutório do "ter de" (müssen) ou do "dever" (Sollen), mas também o conceito de vontade, que deve poder ser determinada a cada momento por imperativos fundamentados racionalmente. O "dever" (Sollen) das recomendações pragmáticas, relativizado nos fins e valores subjetivos, está voltado para o "arbítrio" (Willkür) de um sujeito que toma decisões prudentes com base nos posicionamentos e preferências, dos quais parte de maneira contingente: a capacidade de escolha racional não se estende aos próprios interesses e orientações de valor, mas os pressupõe como dados. O "dever" (Sollen) dos conselhos clínicos, relativizado no télos da vida boa, endereça-se ao esforço de auto-realização, portanto, á vontade do indivíduo que se decide por uma vida autêntica: a capacidade (Fähigkeit) de decisão existencial ou de auto-escolha radical opera sempre no âmbito de um horizonte da história de vida, a partir de cujos traços o indivíduo pode aprender quem ele é e quem gostaria de ser. Por fim, o "dever" (Sollen) categórico de mandamentos morais é direcionado para a vontade - em sentido enfático - livre de uma pessoa que age segundo leis que ela mesma se dá (nach selbstgegebenen Gesetzen): apenas esta vontade é autônoma no sentido de que se deixa determinar inteiramente pelo conhecimento moral. No âmbito de validade da lei moral, nem as disposições contingentes, nem a história de vida e a identidade pessoal põem limites à determinação da vontade pela razão prática. Apenas a vontade conduzida pelo conhecimento moral e inteiramente racional pode chamar-se autônoma. Nela, todos os traços heteronômicos do arbítrio ou da vontade são apagados numa vida única e, ainda assim, autêntica. Na verdade, Kant confundiu a vontade autônoma com a vontade onipotente: para poder pensá-la como uma vontade pura e simplesmente soberana, ele teve de transpô-la ao reino do inteligível. Todavia, no mundo tal como o conhecemos, a vontade autônoma alcança eficácia apenas na medida em que a força de motivação dos fundamentos bons pode afirmar-se contra o poder de outros motivos. É assim que, na linguagem realista do dia-a-dia (em alemão), chamamos a vontade informada corretamente, mas fraca, de vontade "boa".
Em resumo, a razão prática volta-se para o arbítrio do sujeito que age segundo a racionalidade de fins, para a força de decisão do sujeito que se realiza autenticamente ou para a vontade livre do sujeito capaz de juízos morais, conforme seja usada sob os aspectos do adequado a fins, do bom ou do justo. Com isso, alteram-se a cada momento a constelação entre razão e vontade, e o próprio conceito de razão prática. Com o sentido da questão "Que devo fazer?", não é apenas o receptor - a vontade do agente que busca uma resposta - que muda seu status, mas também o emissor - a própria capacidade (Vermögen) de reflexão prática. Para Kant, razão prática e moralidade coincidem; apenas na autonomia, razão e vontade são uma só. Para o empirismo, a razão prática resume-se a seu uso pragmático; com as palavras de Kant, ela reduz-se à utilização da atividade do entendimento segundo a racionalidade de fins. Na tradição aristotélica, a razão prática assume o papel de uma faculdade de julgar que esclarece o horizonte da história de vida de um etos que se tornou costumeiro. Em cada caso, atribui-se um desempenho diferente à razão prática. Isso se mostra nos diversos discursos em que ela se move.
... a razão prática volta-se para o arbítrio do sujeito que age segundo a racionalidade de fins, para a força de decisão do sujeito que se realiza autenticamente ou para a vontade livre do sujeito capaz de juízos morais...

III
Discursos pragmáticos, nos quais fundamentamos recomendações técnicas e estratégicas, têm uma certa afinidade com discursos empíricos. Eles servem para referir saber empírico às fixações de fim e às preferências hipotéticas, e valorar as conseqüências de decisões (informadas de modo incompleto) segundo máximas postas como fundamento. Recomendações técnicas ou estratégicas tiram sua validade do saber empírico no qual se apoiam. Sua validade é independente de se um receptor decide adotar as indicações para a ação. Discursos pragmáticos referem-se a contextos possíveis de aplicação. Eles estão em contato com a formação fática de vontade dos agentes apenas mediante suas fixações de fim e de suas preferências subjetivas. Não há nenhuma relação interna entre razão e vontade. Nos discursos ético-existenciais, essa constelação se modifica de maneira que as fundamentações constituam um motivo racional para a mudança de posicionamento.
Nos processos de compreensão de si, os papéis dos participantes do discurso e dos agentes entrecruzam-se. Quem quiser obter clareza sobre sua vida como um todo, quem quiser fundamentar decisões de valor grave e assegurar-se de sua identidade, não pode deixar-se substituir no discurso ético-existencial -nem enquanto pessoa de referência (Bezugsperson), nem enquanto instância comprobatória. Não obstante, trata-se de um discurso, pois também aqui os passos da argumentação não podem ser idiossincráticos, mas têm de permanecer exeqüíveis intersubjetivamente. O indivíduo só ganha distância reflexiva em relação à própria história de vida no horizonte de formas de vida que ele partilha com outros, e que formam, por sua vez, o contexto para os projetos de vida diferentes de cada um. Os integrantes de um mundo vivido em comum são participantes potenciais que assumem o papel catalisador do crítico desinteressado nos processos de compreensão de si. Esse papel pode ser distinguido no papel terapêutico de um analista, tão logo um saber clínico universalizável entre em jogo. Certamente, esse mesmo saber clínico só se forma em tais discursos.
A compreensão de si refere-se a um contexto específico da história de vida e leva a asserções valorativas sobre o que é bom para uma determinada pessoa. Tais valorações, que se apoiam na reconstrução de uma história de vida da qual ao mesmo tempo se tomou consciência e apropriou, têm um status semântico próprio. Pois "reconstrução" não significa apenas a apreensão descritiva de um processo de formação mediante o qual alguém se tornou aquilo que constata; ela significa, ao mesmo tempo, um exame crítico e uma ordenação reorganizadora dos elementos apreendidos, de sorte que o próprio passado (surge), à luz das possibilidades atuais da ação, como história de formação da pessoa que gostaria de ser e permanecer no futuro e, como tal, ser aceita. A figura do "projeto pro-jetado" (geworfener Entwurf) do pensamento existencialista ilumina o caráter de Jano daquelas valorações fortes que são fundamentadas pela via de uma apropriação crítica da própria história de vida. Aqui, gênese e validação já não se deixam separar uma da outra como nas recomendações técnicas e estratégicas. Quando conheço o que é bom para mim, já me aproprio também, de certa maneira, do conselho - este é o sentido de uma decisão consciente. Quando me convenço da justeza de um conselho clínico, também já me decido a uma reorientação aconselhada de minha vida. Por outro lado, minha identidade só é condescendente, e mesmo indefesa, diante da pressão reflexiva de uma compreensão de si modificada, se esta obedece aos mesmos critérios de autenticidade que o próprio discurso ético-existencial. Um tal discurso pressupõe já, por parte do receptor, o esforço por uma vida autêntica - ou a pressão sofrida por um paciente que percebe a "doença de morte" (Krankheit zum Tode). Nesta medida, o discurso ético-existencial permanece dependente do télos prévio de um modo de vida consciente.

IV
Nos discursos ético-existenciais, razão e vontade determinam-se mutuamente, de modo que permanecem inseridas no contexto que se toma tema deles. Nos processos de compreensão de si, os envolvidos não podem desprender-se da história ou da forma de vida nas quais se encontram faticamente. Discursos prático-morais exigem, ao contrário, o rompimento com todas as evidências (Selbstverständlichkeiten) da moralidade concreta tornada costumeira, como também o distanciamento em relação àqueles contextos de vida aos quais a própria identidade está indissoluvelmente ligada. A intersubjetividade de um grau mais alto (die höherstufige Intersubjektivität), que conjuga a perspectiva de cada um com a perspectiva de todos, pode constituir-se apenas sob os pressupostos comunicativos de um discurso ampliado universalmente, no qual todos os possivelmente envolvidos possam participar e tomar posição com argumentos numa postura hipotética em vista das pretensões à validade (tornadas problemáticas a cada momento) de normas e modos de ação. Esse ponto de vista da imparcialidade solapa a subjetividade da perspectiva própria de cada participante, sem perder o vínculo com o posicionamento pré-formativo dos mesmos. A objetividade de um assim chamado observador ideal obstruiria o acesso ao saber intuitivo do mundo vivido. O discurso prático-moral representa a ampliação ideal de nossa comunidade de comunicação a partir da perspectiva interior. Diante desse fórum, só podem encontrar assentimento fundamentado aquelas sugestões de norma que expressam um interesse comum de todos os envolvidos. Nesta medida, as normas fundamentadas discursivamente fazem valer a um só tempo duas coisas: o conhecimento daquilo que a cada momento reside no interesse geral de todos e, também, uma vontade geral que apreendeu em si sem repressão a vontade de todos. Neste sentido, a vontade determinada por fundamentos morais não permanece exterior à razão argumentativa; a vontade autônoma é completamente interiorizada na razão.
Nos discursos ético-existenciais, razão e vontade determinam-se mutuamente, de modo que permanecem inseridas no contexto que se torna tema deles.
Por isso, Kant acreditava que a razão prática volta inteiramente a si mesma e coincide com a moralidade apenas enquanto instância examinadora de normas. A interpretação teórico-discursiva (diskurstheoretisch) que demos ao imperativo categórico deixa reconhecer, no entanto, a unilateralidade dessa teoria que se concentra unicamente em questões de fundamentação. O problema de como normas fundamentadas dessa maneira podem em geral ser aplicadas torna-se mais agudo assim que as fundamentações morais apoiem-se num princípio de universalidade que constrange os participantes do discurso a examinar as normas discutíveis, separadamente das situações e sem consideração dos motivos subjacentes ou das instituições existentes. Tais normas devem sua universalidade abstrata à circunstância em que são aprovadas no teste de generalização apenas numa figura descontextualizada. Nesta versão abstrata, porém, as normas válidas só podem encontrar aplicação sem restrições naquelas situações padrões, cujos sinais já foram observados de antemão enquanto condições de aplicação dos componentes "se" (Wenn-Komponenten)) da regra. Ora, toda fundamentação de norma tem de operar sob as limitações normais de um espírito finito; portanto, ela não pode a fortiori tomar já explicitamente em consideração todos aqueles sinais que caracterizam as constelações do caso particular imprevisto. Por esse motivo, a aplicação da norma exige uma elucidação argumentativa de seu próprio direito. Neste caso, a imparcialidade do juízo não pode, por sua vez, ser assegurada mediante um princípio de universalização; em questões da aplicação "sensível ao contexto" (kontextsensibel), a razão prática tem, ao contrário, de ser validada por um princípio de adequação. Isto é, tem-se de mostrar aqui, à luz de todos os sinais relevantes da situação, apreendidos de forma a mais completa, qual das normas já pressupostas como válidas é a mais adequada a um caso dado.
Como os discursos de fundamentação, os discursos de aplicação permanecem, decerto, uma operação puramente cognitiva e não oferecem, por isso, nenhuma compensação à separação do juízo moral em relação aos motivos do agir. Mandamentos morais são válidos independentemente de se o receptor despende a força para fazer o que foi reputado como correto (das Für-Richtig-Gehaltene). A autonomia de sua vontade se mede certamente pelo fato de que se pode agir a partir do conhecimento moral; mas conhecimentos morais não provocam já um agir autônomo. A pretensão à validade que ligamos às proposições normativas tem certamente a força de um dever (verpflichtende Kraft). Dever (Pflicht) é, segundo a terminologia kantiana, a afecção da vontade pela pretensão à validade de mandamentos morais. Que os fundamentos que apoiam uma tal pretensão à validade não sejam ineficazes, isso se mostra na má consciência que nos atormenta quando agimos contrariamente a um saber mais abalizado. Sentimentos de culpa são um indicador palpável do não-cumprimento do dever. Mas neles se exprime apenas que sabemos que não temos melhores fundamentos para agir de maneira diferente. Sentimentos de culpa indicam uma cisão da vontade.

V
A vontade empírica cindida da vontade autônoma desempenha um papel digno de nota na dinâmica de nossos processos de aprendizado moral. Porque a cisão da vontade só é um sintoma de fraqueza da vontade se as exigências morais, contra as quais a vontade choca, são de fato legítimas e "cabíveis" (zumutbar) sob condições dadas. Na revolta de uma vontade discordante revelam-se muito freqüentemente, como sabemos, a integridade ferida da dignidade humana, a recusa de reconhecimento, o interesse negligenciado, a diferença negada. Visto que os fundamentos de uma moral tornada autônoma têm uma pretensão análoga à do conhecimento (erkenntnisanalog), a validação e a gênese separam-se de novo aqui, como no discurso pragmático. Assim, por trás da fachada de uma validação categórica, pode-se ocultar e abrigar um mero interesse capaz de impor-se. Essa fachada deixa-se construir tanto mais facilmente, uma vez que a correção dos mandamentos morais, ao contrário da verdade de recomendações técnicas ou estratégicas, não está numa relação contingente para com a vontade do receptor, mas a obriga racionalmente. Para quebrar as correntes de uma universalidade falsa, meramente presumida, de princípios universalistas criados seletivamente e aplicados de maneira sensível ao contexto (kontextsensibel angewendet), sempre se precisou, e se precisa até hoje, de movimentos sociais e de lutas políticas no sentido de aprender das experiências dolorosas e dos sofrimentos irreparáveis dos humilhados e ultrajados, dos feridos e dos mortos, que ninguém pode ser excluído em nome do universalismo moral - nem as classes subprivilegiadas, nem as nações exploradas, nem as mulheres tornadas domésticas (die domestizierten Frauen), nem as minorias marginalizadas. Quem exclui o outro, que lhe permanece um estranho, em nome do universalismo, trai sua própria idéia. O universalismo do respeito igual em relação a todos e da solidariedade com tudo o que tenha o semblante humano se comprova apenas na libertação radical de histórias individuais e de formas particulares de vida.
... Kant acreditava que a razão prática volta inteiramente a si mesma e coincide com a moralidade apenas enquanto instância examinadora de normas.
Essa reflexão ultrapassa já os limites da formação de vontade individual. Até agora investigamos o uso pragmático, ético e moral da razão prática, tendo como fio condutor a questão tradicional: "Que devo fazer eu?". Ora, quando o horizonte da questão se desloca da primeira pessoa do singular para a primeira do plural, modifica-se mais que o fórum da reflexão. A formação de vontade individual segue já, segundo sua idéia, uma argumentação publica que se realiza in foro interno1 . Não se trata de uma mudança de perspectiva da interioridade do pensamento monológico para o espaço público do discurso, mas de uma alteração na posição do problema: o que altera é o papel no qual o outro sujeito se encontra.
Com certeza, o discurso prático-moral desvincula-se da perspectiva à qual as reflexões pragmáticas e éticas ainda estão presas. Todavia, também para a razão que examina normas, o outro só surge como oponente numa argumentação "ao nível da representação" (in einer vorgestellten Argumentation). Assim que o outro apareça como um oposto (Gegenüber) com vontade própria, insubstituível, põem-se novos problemas. Naturalmente, também a formação de vontade individual está sob restrições contingentes; mas das condições de formação de vontade coletiva faz parte, sobretudo, a realidade da vontade alheia.
Dessa circunstância da pluralidade dos agentes e da condição de dupla contingência sob a qual a realidade de uma vontade coincide com a realidade da outra, resulta o problema da busca conjunta de metas coletivas, e o problema já conhecido da regulamentação da vida em comum põe-se de uma nova maneira sob a pressão da complexidade social. Quando o interesse próprio tem de ser posto em harmonia com o alheio, os discursos pragmáticos apontam a necessidade de compromissos. Nos discursos ético-políticos, trata-se da elucidação da identidade coletiva, que tem de deixar espaço para a multiplicidade de projetos individuais de vida. Nos discursos prático-morais, tem-se de examinar não apenas a validade e a adequação dos mandamentos morais, mas examinar também se são cabíveis (deren Zumutbarkeit). Com a implementação de metas e programas põem-se, enfim, questões da transferência e da utilização neutra do poder.
O direito racional moderno reagiu a esses modos de pôr o problema. Naturalmente, falta-lhe a natureza intersubjetiva de uma formação de vontade coletiva, a qual não pode ser representada como uma formação de vontade individual em formato ampliado. Temos de abrir mão das premissas da filosofia do sujeito (subjektphilosophisch) do direito racional. Com o problema da compreensão entre as partes cujas vontades e interesses se chocam, as operações da razão prática executadas in mente2 deslocam-se para o plano dos procedimentos e dos pressupostos comunicativos dos discursos e discussões que são levados realmente a termo.
A partir deste ponto de vista da teoria comunicativa (kommunikatiom-theoretische Sicht), deveríamos também encontrar uma resposta para a pergunta que há muito se põe por nossa análise até aqui. Podemos falar ainda da razão prática no singular, depois que ela foi desagregada em formas diversas de argumentação sob os aspectos do adequado a fins, do bom e do justo? É certo que todos esses argumentos referem-se à vontade de agentes possíveis; mas vimos que também os conceitos de vontade modificam-se com o tipo das perguntas e respostas. A unidade da razão prática já não se deixa fundamentar sem restrições na unidade da argumentação em geral, isto é, no procedimento da argumentação. Ou seja: não há um metadiscurso ao qual pudéssemos recuar para fundamentar a escolha entre formas diversas de argumentação. Não fica, então, à discrição de cada indivíduo ou, na melhor das hipóteses, à sua faculdade de julgar, a escolha se gostaria de apreender e tratar um dado problema sob o ponto de vista do adequado a fins, do bom ou do justo? O recurso a uma faculdade de julgar que examina se os problemas são de natureza estética ou econômica, teórica ou prática, ética ou moral, política ou jurídica, tem de ser insatisfatório para todo aquele que, como Kant, possui bons fundamentos para deixar de lado o conceito aristotélico não-claro da faculdade de julgar. Além disso, não se trata, neste ultimo, de uma faculdade de julgar reflexionante, que refere casos a regras, mas de uma aptidão para a classificação de problemas.
Tal como Peirce e o pragmatismo enfatizaram com justeza, os problemas têm sempre algo de objetivo; somos confrontados com problemas que vêm ao nosso encontro. Esses mesmos problemas têm uma força definidora de situação (eine situationsdefinierende Kraft) e requerem, por assim dizer, nosso espírito segundo a própria lógica deles. Não obstante, se a cada instante seguissem sua própria lógica, que não teria nenhum contato com a lógica do problema seguinte, toda nova espécie de problema puxaria nosso espírito numa outra direção. A razão prática, que encontrasse sua unidade no ponto cego de uma tal faculdade de julgar reativa, permaneceria uma formação (Gebilde) opaca, apenas explicável fenomenologicamente.
A unidade da razão prática pode fazer-se valer, de maneira inequívoca, apenas no contexto interno daquelas formas comunicativas nas quais as condições de formação racional da vontade coletiva tomam figura objetiva.
Jürgen Habermas é filósofo do Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt (Alemanha), e conferencista do mês de outubro, 1989 do IEA. *
Texto apresentado na Conferência do Mês (IEA/USP): "Zum pragmatischen, ethischen und moralise hen Gebrauch der praktischen Vernunft", realizada em outubro de 1989. 1 Assim no original. (N .T.) 2 Assim no original. (N.T.)

© 2008 Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo
Av. Professor Luciano Gualberto, Trav. J - 37405508-900 São Paulo SP Brasil
Tel: +55 11 3091-3919 / 3091-4442Fax: +55 11 3091-4306

Seguidores

Visualizações nos últimos 30 dias

Visitas (clicks) desde o início do blog (31/3/2007) e; usuários Online:

Visitas (diárias) por locais do planeta, desde 13/5/2007:

Estatísticas