A doença não é um acontecimento que atinge um indivíduo, o qual passa, então, a estar a ela submetido. O organismo doente está envolvido no aparecimento, no desenvolvimento e na cura de sua doença. O ser humano pode-se instalar na doença, pode obter com ela benefícios, mas pode, principalmente, pela doença, exprimir tendências profundas.
Existe, então, um fenômeno psique-soma no processo de adoecimento físico do ser humano, e seu estudo, dentro de uma perspectiva moderna, a psicossomática, foi iniciado por Freud, a partir de seus estudos sobre a"histeria de conversão". No acontecimento histérico, o corpo relata, fala, descarrega e protesta através do seu próprio adoecimento. É sempre, uma forma de o organismo expressar conflitos profundos. Como os distúrbios digestivos, por exemplo, que são, muitas vezes, expressão de conflitos entre o reter e o expelir, entre o desejo e a necessidade.
A doença, portanto, não é algo que vem de fora ou já está lá antecipada, é, sim, um modo peculiar de a pessoa se comunicar em circunstâncias adversas. É, pois, em suas várias formas, um modo de ser no mundo, um modo de se relacionar com as pessoas em volta. O conhecimento atual sobre o sistema imunológico, visto como um sistema intermediário entre o indivíduo, seus outros sistemas e o meio exterior e, também, como mantenedor da integridade corporal - portanto, um sistema auto-regulável, adaptativo e da vida de relação, estando, pois, em íntima interação com o sistema nervoso e com o sistema endócrino -, tem sido uma enorme contribuição na compreensão do tênue limite existente entre o que é propriamente somático e o que é propriamente psíquico.
Isto nos leva a ter que encarar o limite do conhecimento técnico na comprensão dos mecanismos de formação das doenças; e, em função desses princípios, colocamo-nos a refletir sobre a importância de se mudar o foco da ação terapêutica da doença para a interação com alguém doente, de quem, na verdade, podem advir os recursos realmente curadores de uma doença.
Uma das mais importantes fórmulas acerca do encontro entre o psíquico e o somático é a fórmula da energia. No conceito de "Unidade Funcional" ou "Identidade Básica", criado por William Reich, considera-se que a fonte de todos os acontecimentos humanos é a bionergia, ou orgon, o que significa que as atitudes corporais e as atitudes mentais-emocionais se correspondem, podendo substituir-se e influenciar-se mutuamente. (1) Cada região do corpo, além de prestar-se a uma determinada função vivente, pode emprestar-se para representar uma zona específica de conflito, conflito energético entre o psíquico e o somático. Esses conflitos são cargas emocionais relacionadas a acontecimentos vitais do passado, os quais, mal "metabolizados", permanecem e atualizam-se, criando obstáculos diversos à vida. Quando mobilizados, podem liberar ou distribuir energia, facilitando a consciência das circunstâncias vividas, a expressão emocional, antes contida, e a organização de um novo modus vivendi psico/corporal.
Todo o stress ocorrido durante as fases primitivas do desenvolvimento somato-emocional do indivíduo geram, em cada organismo humano, reações energéticas específicas, que servem de base para o desenvolvimento de doenças, no futuro, desse organismo. É Federico Navarro quem diz que as biopatias primárias, que correspondem às bases energéticas das doenças graves e geralmente "incuráveis", estariam relacionadas ao stress vivido em períodos mais tenros da vida humana (uterinos). As biopatias secundárias, bases de doenças graves e geralmente "curáveis", estariam também ligadas ao stress ocorrido em períodos iniciais (uterinos) e em torno do nascimento. As doenças somato-psicológicas conhecidas como "subclínicas" (ex.: gastrites, úlceras não instaladas, etc) corresponderiam ao stress ocorrido no período da infância. As somatizações ligadas a fortes acontecimentos emocionais (como paralisias histéricasdiversas), corresponderiam ao stress advindo da puberdade em diante. (2)
Diante dessa concepção de interação mente/corpo/energia, podemos criar relações entre as diversas regiões do corpo afetado e a expressão de conteúdos subjetivos. E assim, podemos observar que, mobilizando o movimento respiratório irregular, o silêncio peristáltico, a contração ocular e as diversas disfunções organísmicas, possibilitaremos o encontro com os sentidos mais profundos da gênese da doença de uma pessoa. E restabelecendoo ritmo respiratório espontâneo, os sons peristálticos rítmicos, o contato ocular descontraído, em síntese, o estado natural do organismo humano estaria a pessoa ambientando um novo campo energético onde basear a sua saúde.
Um acompanhamento terapêutico baseado numa visão da integração do organismo pode, pois, propiciar uma busca mais profunda do sentido da cura.
Outra maneira de olhar para o acontecimento doença/grave e a possibilidade/da/morte é a que pretende integrar o somático, o psíquico e o espiritual. Nessas visões, como na de David Boadella, dá-se uma grande ênfase ao grounding espiritual e aos estados transpessoais, reconhecendo-se que o trabalho psicossomático abre conexões para além do físico. O trabalho terapêutico, dentro de perspectivas que consideram a questão "espiritual", requer uma profunda reflexão sobre a relação entre o terapeuta e seu cliente. Ressonância, empatia, amor de transferência, tele são conceitos diversos para falar da mesma e necessária humanidade dessa relação. Conceitos como o de inner-ground, self, eu superior e outros fazem referência a uma realidade essencial, relacionada à presença e ao ser mais profundo em cada um de nós. (3)
Haveria, pois, na experiência de estar doente e/ou de morrer, um sentido espiritual de contínuo aprendizado. Nesse sentido, poderia haver um grande amparo no processo de adoecimento e de morte de uma pessoa se ela experimentasse a presença de um outro corpo/espelho/apoio/contato a estimular-lhe a vida. Como terapeutas precisamos encontrar vias em nós mesmos e nos prepararmos para exercer essa forma de ajuda. Segundo Susan Sontag, "a doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa. Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença. Embora todos prefiramos usar somente o bom passaporte, mais cedo ou mais tarde, cada um de nós será obrigado, pelo menos por um curto período, a identificar-se como cidadão do outro país. (...) Meu ponto de vista é que a doença não é uma metáfora e que a maneira mais honesta de encará-la - e a mais saudável de ficar doente - é aquela que esteja mais depurada de pensamentos metafóricos..." (4)
Atendendo Alice, muito refletimos sobre essa questão. Alice teve que fazer uma cirurgia cardíaca para instalar uma válvula-prótese. Era a consequência de anos de um longo curso de uma febre reumática, que tinha sido bem tratada. Evidentemente, passara uma infância limitada em seus movimentos e possibilidades, já que quaisquer esforços agudizavam a sua doença. A família, estóica, ensinou-a a lidar, bastante naturalmente, com as suas condições de saúde, mas "esqueceu-se" de valorizar os aspectos emocionais vividos por uma criança diante de experiência tão limitadora. E, provavelmente, também, não pôde valorizar os aspectos emocionais ligados às suas próprias vivências diante de tarefa tão árdua como a de cuidar, ininterruptamente, de uma criança com febre reumática.
Tudo bem "contidinho", Alice construiu-se, sempre, objetivamente natural. Perto da cirurgia, sentiu medo - mas tranqüilizou-se e cuidou-se muito bem: fisicamente. Teve uma boa cirurgia, excelente recuperação, exímios cuidados médicos e familiares.
E agora, passado o pós-operatório, sozinha, sem a proximidade de sua família, sente-se machucada no seu peito: deprime-se. Luta consigo própria:"que é isso?, eu, sentindo essas coisas incontroláveis...?" É preciso "convencê-la" a emocionar-se. Permitir-se sofrer por suas próprias dores. É verdade, é "natural" a sua doença; é "apenas uma doença", que "dói aqui, dói ali..." -Mas chore, Alice! Seu peito foi aberto. Lamente-se. É só ser humana! Alice "atende". Transforma-se, agora, em lágrimas e estoicismo. -Bravo, Alice! Bravo!
Haveria como aplicar essa visão não-preconceituosa da naturalidade da doença para com as concepções acerca da morte?
Referências Bibliográficas
1 - REICH, W. - "A função do Orgasmo" - Editora Brasiliense, 11a edição, São Paulo, 1985.
2 - NAVARRO, F. - "Somatopsicodinâmica das Biopatias" - EditoraRelume Dumará, 1a edição, Rio de Janeiro, 1991.
3 - BOADELLA, D. - "Correntes da Vida - Uma introdução à Biossíntese"Summus Editorial, São Paulo, 1992.
4 - SONTAG, S. - "A Doença como Metáfora" - Edições Graal, Rio de Janeiro, 1984.
5 - LEVINE, S. - "Healing into Life and Death" - Doubleday, New York, 1987.
3 - BOADELLA, D. - "Correntes da Vida - Uma introdução à Biossíntese"Summus Editorial, São Paulo, 1992.
4 - SONTAG, S. - "A Doença como Metáfora" - Edições Graal, Rio de Janeiro, 1984.
5 - LEVINE, S. - "Healing into Life and Death" - Doubleday, New York, 1987.
6 - KUBLER-ROSS, E. - "Friends of Shanti Nilaya" (magazine) - Londres, 1990.
Resumo do currículo dos autores:
Humbertho Oliveira - Médico, Psicoterapeuta Somático, Fundador e Coordenador do Grupo Quiron - Centro de Estudos e Práticas Transomáticas, Psicoterapeuta da Associação de Apoio à Criança com Câncer.
Mauricio Tatar - Médico, com formação em Medicina Chinesa e Homeopatia, participação em cursos, palestras e grupos de estudo em Terapia Floral, Cromoterapia, Fitoterapia, Dietoterapia e Oligoelementos. Ministra cursos desde 1989 sobre estes temas.
Susana Hertelendy - Psicóloga formada pela Columbia University, New York, EUA em 1975; Revalidação pela UFRJ, Rio de Janeiro, 1980; Psicoterapeuta Somática; Guest Trainer internacional do grupo Transformational Energetics, New York, EUA; Fundadora e Membro do Quiron-Centro de Estudos e Práticas Transomáticas, RJ.
Vania Didier - Psicóloga, Psicoterapeuta Somática, Fundadora e Coordenadora do Grupo Quiron - Centro de Estudos e Práticas Transomáticas.
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