sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Algumas considerações sobre a ética utilitarista

Por Rafael F. Alves
A ética utilitarista representa uma das mais influentes teorias no campo da Filosofia Moral contemporânea. Trata-se de um interlocutor obrigatório em qualquer estudo específico sobre esta temática. Por isso, toda tentativa de rediscussão e redefinição dos conceitos morais existentes requer a priori uma tomada de posição em relação às idéias colocadas por esta linha de pensamento.

Os postulados desta ética utilitarista são bem conhecidos. Na verdade, o ponto de partida pode ser indicado por aquilo que se denomina princípio da utilidade, a ser formulado da seguinte maneira: uma ação é útil e, portanto, justa, ética e correta, quando traz mais felicidade do que sofrimento aos atingidos. Deste modo, o prejuízo de alguns poderia ser justificado pelo benefício de outros, desde que estes estivessem em maior número (cálculo de maximização do bem).

Quando esta felicidade e este sofrimento são expressados em termos de prazer e dor, estamos diante do que se denomina utilitarismo clássico (Jeremy Bentham, John Stuart Mill, Henry Sidgwick). O utilitarismo preferencial (contemporâneo), ao contrário, vale-se mais do conceito de interesses (Peter Singer). Todavia, esta é uma distinção de caráter mais terminológico, sem maior rigor científico, até porque não se pode esquecer que, mesmo entre os contemporâneos, a idéia de interesses também está ligada aos limites da sensibilidade: a capacidade de ter prazer e sentir dor é condição para que se possa falar em interesses. Neste sentido, um ser só será levado eticamente em consideração na medida em que possa sofrer, pois apenas então será portador de interesses.

Pelo exposto neste último parágrafo, resta claro que, para um utilitarista, o animal não-humano, por ser capaz de sofrer, é também portador de interesses, os quais devem ser considerados tal como os interesses humanos. A bem dizer, o utilitarismo está intimamente ligado ao chamado princípio da igual consideração dos interesses, ou seja, independentemente de quaisquer características naturais, todos os interesses, humanos e não-humanos, devem ser igualmente levados em conta em uma determinada decisão ética (é bom frisar que isto não significa dizer que o sofrimento humano não possa ser, às vezes e dependendo do caso concreto, maior que o sofrimento não-humano ou vice-versa, mas apenas que, a princípio, não há nada a justificar uma diferenciação entre estes dois sofrimentos).

Um dos argumentos mais utilizados pelos utilitaristas para justificar a opção por esta teoria ética reside no bojo da discussão sobre a universalidade da moral. Rejeitando expressamente o relativismo absoluto, que torna estéril qualquer debate sobre juízos morais na medida em que estes estariam imbuídos de caráter exclusivamente subjetivo, variando de uma cultura a outra, o utilitarismo aponta para a existência de um raciocínio ético, dada a possibilidade de justificarmos as nossas ações de um ponto de vista não puramente pessoal. A particularidade é que esta justificativa teria sempre uma pretensão universal, no sentido de convencer os interlocutores a respeito de nossos argumentos. Assim, todo juízo ético possuiria este caráter de universalidade. Esta constatação faria surgir inexoravelmente a necessidade de uma ética utilitarista, pois a referida universalidade traria consigo a consideração dos interesses dos outros. A conjugação dos meus interesses com o dos outros faria surgir, então, o inevitável cálculo da maximização dos benefícios e minimização dos prejuízos, tal como mencionado acima. Portanto, o utilitarismo seria a ética mínima, dentro da pretensão de universalidade inerente ao raciocínio ético.

Eis aí, em apertada síntese, o esqueleto do pensamento utilitarista. Façamos agora algumas considerações. Em primeiro lugar, sempre que se discute a universalidade da moral é necessário ter como ponto de partida o imperativo categórico kantiano: a tão conhecida máxima “aja de modo que queiras que a tua lei se torne universal”. Para Kant, o ato moral seria então a ação conforme este dever expresso na máxima. A bem dizer, seria agir de acordo com o dever, por dever, ou seja, sem qualquer outro tipo de inclinação senão o próprio ato. A ação boa em si mesma, independente dos fins (o que torna o imperativo categórico e não hipotético), é o que distingue fundamentalmente o utilitarismo da ética kantiana. Mas há traços semelhantes, totalmente compreensíveis à vista da influência que o pensamento kantiano exerceu na filosofia ocidental moderna. A busca por uma máxima ética que guie as ações de todos os seres humanos é um indício de semelhança entres as duas teorias. Sendo aceito que de fato o relativismo puro não é eticamente defensável, caberia perguntar se realmente constitui tarefa da Filosofia Moral procurar um imperativo universal absoluto. Em outras palavras, importa mais a resposta à pergunta “como devemos agir” ou a compreensão de suas dimensões e implicações? Ainda que negue o kantismo, a ética utilitarista acaba apelando, em última instância, para um imperativo que pretende ser universalmente válido.

Na verdade, o problema é mais profundo: o utilitarismo é imperfeito ao fundamentar a pretensão de universalidade de todo juízo moral. O convencimento dos interlocutores a respeito nossos juízos moral só é possível se existir algum tipo de relação de identidade entre os comunicantes. Esta identidade não pode ser apenas biológica, tal como defendido pelas teorias que valorizam a primazia dos direitos humanos e do respeito absoluto à vida humana, dada a peculiar característica do homem racional e auto-consciente. É preciso ir além e aprofundar o conhecimento sobre a própria condição da existência humana. Na filosofia contemporânea, o existencialismo é certamente uma corrente de grande influência nesta temática. Convém, antes de tudo, entender o absurdo paradoxo da condição humana (Albert Camus). Desde o momento em que nasce, o homem vê-se lançado em um mundo estranho, lutando para sobreviver. Ao mesmo tempo em que deve olhar egoisticamente a si mesmo para conseguir satisfazer seus interesses e necessidades, percebe paradoxalmente que não consegue fazê-lo sem o outro. O inferno são os outros, diria Jean Paul Sartre. Eis aqui o ponto central de toda crítica à ética utilitarista. A alteridade é também um dos pilares fundamentais do utilitarismo. Sem o outro, a sua máxima cairia novamente no relativismo puro: “faça aquilo que aumente a sua felicidade e diminua o seu sofrimento”. A consideração dos interesses do outro faz surgir a necessidade do cálculo da maximização dos benefícios, dado o conflito que se instaura justamente em virtude da contraposição de preferências. O problema está em que a necessidade da consideração dos interesses alheios não surge propriamente em decorrência da pretensão de universalidade de todo juízo ético, como diriam os utilitaristas (daí a sua imperfeição), pois esta também é conseqüência de algo que precede, ou seja, a própria condição do ser humano. A incompreensão da especificidade da existência humana, que na verdade está por trás de tudo, é justamente aquilo que solapa as bases da ética utilitarista.

Os sintomas desta incompreensão da condição humana são evidentes. Como os próprios utilitaristas confessam, não há precisão na utilização de termos como felicidade, prazer e dor. O que é felicidade? Trata-se de termo recorrente na filosofia (de Aristóteles em Ética a Nicômaco a Kant em Metafísica dos Costumes), mas ainda carecedor de maior fundamentação. A felicidade surge com o prazer e desaparece com a dor? O prazer é sempre bom e a dor é sempre ruim? A felicidade ligada aos interesses não seria aparente? Devemos realmente buscar a satisfação de todos os nossos interesses? Em que termos? Todos os nossos interesses são eticamente válidos ou alguns devem ser rechaçados? As respostas que o utilitarismo dá a estas perguntas não são satisfatórias. Grande parte delas chega mesmo a ficar sem resposta. A bem dizer, talvez interesse menos as repostas e mais as perguntas, ou melhor, o tipo de pergunta e o modo de perguntar. Talvez seja o tempo de colocar os dilemas éticos em outros termos.

O utilitarismo acentua por demais o papel desempenhado pela razão no campo moral (herança não apenas do período iluminista, mas de toda a tradição da filosofia ocidental, desde os gregos clássicos). Se a ética se volta à conduta humana, necessária a compreensão do que é a existência do ser humano, independente de sua racionalidade. Importa menos a essência do homem (esse) e mais a sua existência (ens). Assim, do ponto de vista existencialista, o homem é um ser-no-mundo-com-os-outros (Martin Heidegger). A partir disso, percebe-se a peculiar situação humana. Lançado no mundo para sobreviver, pensa egoisticamente mas depende paradoxalmente tanto do mundo quanto do outro. Eis, então, o ponto principal: quem é o outro? Está claro que a nossa existência individual depende da existência do outro. Eu só sou na medida em que o outro também é. Eu e outro se indiferenciam. E isto prescinde da facticidade, ou seja, independe da presença material do outro: mesmo que este esteja ausente, a existência do eu a ele se vincula. Por isso, ao contrário do que pregam os utilitaristas, o que importa não é o outro concreto, cujo interesse se mostra conflitante, mas o outro indeterminado. Quando se diz que o homem é-com-o-outro, é a esta indeterminação que se está fazendo referência. Nestes termos é que se pode dizer que o outro, na verdade, não é ninguém, ou melhor, o absoluto impessoal (Heidegger, Ser e Tempo). Todos são o outro e ninguém é si próprio.

Quando se compreende a existência humana nestes termos, percebe-se que o prazer e a felicidade, critérios básicos da ética utilitarista, são na verdade forjados pela impessoalidade. Está cada vez mais difícil vivenciar a felicidade ao mesmo tempo em que todos sabem onde ela supostamente residiria. Em uma sociedade massificada, marcada pelo materialismo e pelo consumismo exacerbado, todos contracenam a virtualidade do prazer criada pelo grandes meios de comunicação. A angústia em que vive o homem moderno apenas revela a consciência do absurdo de sua existência. Mas esta vivência na dor, ao contrário do que diriam os utilitaristas, não é algo ruim em si mesmo.

Uma teoria ética que ignore todo este estado de coisas corre o sério risco de se distanciar da realidade. Pode até fornecer linhas gerais (ainda que duvidosas) para determinadas condutas em tópicos mais polêmicos, como aborto e eutanásia, mas certamente não servirá para orientar o agir humano de modo geral. Quem seria afinal este terceiro observador imparcial e super-racional? Que ser humano conseguiria elaborar racionalmente o cálculo da maximização dos benefícios em suas atitudes? Esta eficiência racional da maximização é realmente necessária ou apenas encobre o ceticismo em relação à plena realização dos interesses? Enfim, por que confiar tanto na racionalidade humana quando a única certeza que temos é de que estamos no-mundo-com-os-outros? Convém ressaltar, contudo, que toda a crítica aqui esboçada está pouco relacionada com os opositores tradicionais do utilitarismo (Ronald Dworkin e John Rawls), porque mesmo estes não souberam explicar plenamente a existência do homem , tal como aqui entendida.

Portanto, dentro de todo o exposto, resta claro que o fato de todo juízo ético pretender à universalidade não implica necessariamente um recurso ao utilitarismo como uma moral mínima. Por outro lado, acaba fazendo transparecer a necessidade da compreensão da condição humana como fundamento de qualquer teoria ética. O escopo deste texto, contudo, é menos elaborar uma nova teoria e mais apontar as imperfeições do utilitarismo. Se estamos acorrentados ao impessoal, isto não significa que não podemos exercer nossa liberdade. A preocupação hoje deve ser a de procurar saber em que realmente consiste a felicidade e o que realmente nos dá prazer. Um ética utilitarista só será possível quando rever estas suas premissas.
Original em: http://www.geocities.com/filosofiasf/rafael03.htm

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