sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Uma ética do cuidado

Uma ética do cuidado
20/10/2010
Leia a entrevista exclusiva com o consultor em Sustentabilidade, Marcelo Abrantes Linguitte

Uma sociedade planeta sustentável é aquele que valoriza o ser humano e o ambiente onde ele vive. A afirmação é do consultor em sustentabilidade, Marcelo Abrantes Linguitte. Em entrevista exclusiva para a Revista FUNCEF, ele fala sobre o papel dos fundos de pensão com o desenvolvimento verdadeiramente sustentável, elenca os valores indispensáveis a uma organização socialmente responsável e cita o economista chileno Manfred Max-Neef: "Nenhum processo ou interesse econômico, sob nenhuma circunstância, pode estar acima da referência à vida".

Revista FUNCEF - Qual deve ser o papel dos fundos de pensão na sustentabilidade?
Marcelo Abrantes - Na minha avaliação, os fundos de pensão possuem três papéis importantes com relação ao tema de sustentabilidade: incorporar de forma consistente o tema de sustentabilidade na gestão de suas atividade cotidianas; utilizar o tema de sustentabilidade para escolher investimentos com menores riscos, principalmente no segmento de renda variável; utilizar sua capacidade de investimento para influenciar de forma positiva as empresas para que elas incorporem o tema em sua gestão.

Revista FUNCEF - Quais os valores indispensáveis às práticas socialmente responsáveis de uma organização?
Marcelo - Na medida em que sustentabilidade é uma forma contemporânea de gestão, alguns valores a diferenciam de outras formas de se gerir uma empresa. São eles: ética; transparência; visão multi stakeholder, que leva em conta que a organização deve considerar a contribuição de todas as partes envolvidas no negócio; metas empresariais alinhadas ao desenvolvimento sustentável e percepção sistêmica, ou seja, a compreensão de que o todo afeta as partes e as partes afetam o todo, que afeta uns aos outros.
A ética da sustentabilidade não é uma ética de regras, que impõe padrões de comportamento e não se preocupa com a essência de cada um. É uma ética do cuidado, como diria Boff, uma ética que busca o desenvolvimento do outro, uma ética feita a partir do outro e não para oprimir o outro.

Revista FUNCEF - E os demais valores?
Marcelo - A transparência consiste em mostrar, de forma clara, o que fazem e quais são os resultados de suas operações. A visão multi stakeholder parte da noção de que uma empresa é parte de uma rede, apenas um nó, e não o centro do universo, e se constrói a partir da contribuição de todos.
Metas empresariais alinhadas com o desenvolvimento sustentável partem da visão de que o mercado não é um fim, mas um meio de promoção do desenvolvimento humano e da preservação da vida no planeta.
Gosto muito do pensamento do economista chileno Manfred Max-Neef, que diz: "Nenhum processo ou interesse econômico, sob nenhuma circunstância, pode estar acima da referência à vida". Este é nosso grande desafio como civilização, e como modelo econômico também.
A percepção sistêmica é a visão que os gestores devem ter de que, em um sistema, o todo afeta as partes e as partes afetam o todo, que afeta uns aos outros. Por isso, não podemos falar em sustentabilidade do ponto de vista de uma empresa apenas, mas desde a perspectiva do sistema econômico no qual a empresa se insere.

Revista FUNCEF - Responsabilidade Social dá lucro?
Marcelo - Diria que sim. Nas atividades de consultoria da Terra Mater, junto a nossos clientes, temos podido observar muitos resultados positivos, como aumento nas vendas e maiores margens, redução de custos - principalmente quando o tema é diminuição do uso de recursos naturais - redução de capital empregado em projetos, acesso a novas fontes de financiamento com custos mais baixos, menores riscos de operação, melhoria de imagem da empresa, melhoria no capital humano e aprendizado organizacional e melhoria em processos de gestão.
Tudo isso gera maiores lucros e maior competitividade. Em 2009, a consultoria de imagem Interbrand fez um estudo que mostrou que 13% do valor de mercado de uma empresa de capital aberto varia em função do conhecimento que as pessoas têm sobre as práticas de sustentabilidade dessa empresa. Ou seja, quanto mais a empresa se envolve - de forma verdadeira - com esse tema, maior a possibilidade de retorno financeiro.

Revista FUNCEF - O tema sustentabilidade já começa a fazer parte da agenda de muitas organizações. O mundo está vivendo, de fato, um momento de transição para uma sociedade mais justa e sustentável?
Marcelo - Quero crer que sim. Mas para onde nos leva essa mudança? A sustentabilidade traz a proposta de reflexão sobre qual seria o padrão de vida mais adequado para que possamos viver bem, impactando minimamente a natureza. Mas, na nos enganemos: iremos sempre impactar a natureza.
Precisamos de calcário para produzir cimento que é usado em nossas casas.
Precisamos de água, que é retirada de rios e lagos. Precisamos de alimentação. Precisamos de madeira que vem das florestas. A pergunta é: será que conseguimos nos aproximar nossa produção econômica aos ciclos da natureza, de forma a impactá-la o menos possível "Se diminuirmos o consumo e organizarmos nossa economia para que dependa menos do consumo exagerado, creio que estaremos caminhando no sentido de uma maior harmonia, que é sempre tensa, instável, nunca estática".
Outra coisa importante é que a onda de sustentabilidade tem dado muita importância ao meio ambiente, mas tem deixado de fora o ser humano que aí vive. Então, a questão é como devemos cuidar da vida humana cuidando também do planeta. Não existe meio ambiente equilibrado com pessoas desequilibradas. Essa é a primeira e a principal lição de casa para cada um de nós. O restante virá como consequência.

Revista FUNCEF - De que forma o meio ambiente impacta no desenvolvimento econômico e social?
Marcelo - Uma das premissas da sustentabilidade é que economia, questões sociais e meio ambiente andam de mãos dadas. Como vimos, vivemos em um sistema e, em sistemas, não há uma desconexão entre os seus membros. Não há "separatividade", que é algo fruto da nossa forma cartesiana, tradicional de olhar o mundo. Nós nos acostumamos a ver e compreender os fenômenos da vida como isolados, sem que haja impactos uns sobre os outros. No entanto, não é assim que os sistemas operam.
Tomemos, por exemplo, o caso da exploração de madeira ilegal na Amazônia. O desmatamento não ocorre porque as pessoas gostam de cortar árvores, mas porque existe um mercado consumidor desse produto, que é uma questão econômica. Para atender a esse mercado, madeireiros ilegais contratam trabalhadores da região amazônica para executar o desmate. Ora, esses trabalhadores " muitas vezes submetidos a trabalho forçado " aceitam essa atividade por não haver muitas possibilidades de remuneração na região, ou seja, não existem outras formas de manutenção de sua vida e de sua família. Isto é uma questão social.
Enfim, em nossa visão sistêmica, aspectos econômicos, sociais e ambientais caminham juntos. Acho que vivemos sociedades esquizofrênicas que não percebem que não existe economia sem cuidado com o meio ambiente e com as pessoas que vivem nesse ambiente.

Revista FUNCEF - Qual a importância dos relatórios sociais elaborados pelos fundos de pensão? O que isso significa para os participantes?
Marcelo - A grande importância dos relatórios sociais dos fundos de pensão, que, infelizmente, ainda não são muitos, é que eles permitem avaliar o impacto das entidades em várias dimensões, além da questão da provisão de aposentadoria complementar. Este aspecto, que é básico e o mais prontamente exigido dos Fundos, é melhorado através da incorporação da sustentabilidade na gestão dos fundos, e os relatórios permitem o diagnóstico e o estabelecimento de melhorias importantes.
Através da incorporação do tema da sustentabilidade no "radar" dos Fundos de Pensão, eles poderão administrar com mais profissionalismo os recursos colocados sob sua responsabilidade, obtendo os melhores resultados dos investimentos que gerenciam, na medida em que esse tema permite diminuir os riscos de investimentos e, portanto, contribuir para resultados de longo prazo.
Os relatórios, além disso, têm sido de grande valor para induzir as Entidades a observar de forma estratégica e cuidadosa a questão da Sustentabilidade, principalmente nas empresas nas quais investem ou desejam investir. Isso porque os Fundos de Pensão têm se conscientizado de forma consistente que seus investimentos podem ser seriamente impactados por formas de gestão não sustentáveis.
Agora, é importante conduzir a produção de relatórios sociais com o foco em aprendizado organizacional, ou seja, vou levantar dados para ver como estou e como posso melhorar. Levantar dados apenas para colocá-los em uma publicação
definitivamente não contribui para mudanças sustentáveis nas empresas. Se não forem acompanhados de reflexão e ações concretas, os dados levantados tornam-se um fardo para a equipe interna e uma falácia para o leitor.

Revista FUNCEF - A escola, a família e a sociedade estão preparando crianças e jovens mais conscientes para a temática do meio ambiente?
Marcelo - Não sou especialista em educação de crianças e jovens, mas me parece que todos (escolas, família e sociedade) estamos tentando educar nossos filhos e filhas para que sejam mais conscientes com relação ao meio ambiente. Há muitas ações bem interessantes em escolas que mostram que algo está sendo feito, como semanas de meio ambiente, trabalhos em grupo, visitas a comunidades indígenas e a eco vilas. Na sociedade, o crescimento de ONGs ambientalistas e a própria ação das empresas é uma prova de que estamos nos movimentando.
Muitas famílias já separam seu lixo, têm minhocários, fazem passeios mais "ecológicos". Acho que estamos avançando muito nesse sentido. As crianças e adolescentes de hoje já têm uma consciência mais conectada com a natureza que as gerações anteriores. Eles criticam os pais quando estes jogam lixo na rua ou deixam a torneira ligada quando escovam os dentes. É muito bom ver isso. No entanto, creio que estamos apenas no começo desse processo; estamos na "casca", caminhando para a essência, que é uma consciência maior sobre si mesmo, sobre a vida e sobre seu papel nela.
Como disse, não vamos criar um meio ambiente equilibrado com pessoas desequilibradas, mas o que vemos, infelizmente, é que cada vez mais crianças e jovens saem de famílias desequilibradas. É preciso resgatar o "sagrado" da vida para trazer equilíbrio a ela. E esse desequilíbrio começa desde cedo, quando ensinamos nossos filhos e filhas a tomar decisões apenas baseados na razão, esquecendo que somos também emoção, intuição e sensação. Nossa sociedade ainda baseia-se muito na violência e na opressão e isso não é "sustentável". É preciso criar novos modelos mentais, baseados na ética do cuidado, na compaixão, em uma maior cooperação. Mas, acho que estamos caminhando para isso, ainda que a uma velocidade baixa.

Revista FUNCEF - Quais os grandes desafios que o tema "sustentabilidade" impõe às gerações presentes e futuras?
Marcelo - Creio que seja o desafio de uma nova consciência que entenda o mundo como um todo, como uma conexão única. Não um mundo igual e sem diferenças, que é impossível ' e indesejável, mas um mundo onde as diferenças sejam aceitas e valorizadas. Um mundo que saiba esperar os ciclos naturais da vida e não queira acelerá-los. São muitos os desafios. No entanto, creio que se focarmos no maior desafio de todos, que é a ampliação de nossa consciência, já estaremos fazendo um grande trabalho, para nós e para o mundo.
Ampliar nossa consciência significa, acima de tudo, voltar-se a si mesmo e ao outro. Para isso, é necessário que as gerações futuras percebam que o homem é um ser abrangente. Uma visão abrangente e integral do homem sugere que ele seja composto por diferentes dimensões: a física, onde são satisfeitas suas necessidades básicas de subsistência, como alimentação, manutenção da integridade do corpo etc.; a mental, onde se apresenta suas necessidades por conhecimento, educação, espírito crítico; a emocional, espaço de suas experiências subjetivas; e a espiritual, onde se dão suas relações com aquilo que cada um entende como sendo transcendente.
Nesse sentido, devido à conectividade inerente ao ser humano, o bem de cada pessoa e de todas as pessoas depende não apenas de suas próprias potencialidades, mas também de quão saudáveis são os sistemas em que elas se encontram, tanto em termos culturais, econômicos, políticos, sociais como espirituais. As gerações futuras devem trabalhar também no sentido de tornar esses sistemas mais saudáveis. Enfim, os desafios são muitos. Mas, vamos começar por nós mesmos. Afinal, como dizia Gandhi, nós somos a mudança que queremos ver no mundo.

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