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quarta-feira, 23 de junho de 2010

Avatar é aqui

Samira Feldman Marzochi

Mesmo que Avatar não seja um filme de grande profundidade, aproxima-se, sinteticamente, de um estrato da cosmologia contemporânea, e assim nos permite analisá-la. Avatar traduz o modo como, em alguma medida, percebemos nosso mundo. Sabemos que nenhuma representação, mesmo individual ou de um grupo, é absolutamente particular. A representação da lua Pandora é extraída da “consciência coletiva” terrena, produzida em algum nível do “senso comum”, e particularizada pela criatividade de uma equipe. Adentrar em Pandora, por isso, é viver uma cosmologia etnografada em terceira dimensão. De modo inconsciente, o diretor e toda a produção atuaram como etnógrafos de um mundo imaginado.

Mas, sabemos também que os mundos, inclusive a Terra, são sempre imaginados, se tudo o que existe é mediado por símbolos e imagens. Inversamente, toda imaginação é verdadeira: são visões de mundo que se sobrepõem ao “real” entendido como a condição material mínima para a continuidade da vida orgânica. Pandora, portanto, pode ser considerado um planeta Terra de projeção cosmológica que revela alguma coisa sobre o modo como estamos nos vendo. (Em parte, disto advém seu sucesso publicitário).

Pandora revela duas ideologias importantes da contemporaneidade. Uma de ordem política, a outra de caráter sociológico. Ao contrário da caixa mitológica, esta lua guarda as melhores éticas, aspirações e valores políticos. Neste mundo, realiza-se o ideal do pragmatismo bem intencionado em que não há significados transcendentes, distinção entre “pensamentos” e “coisas”, e tudo faz parte de um mesmo “estofo” universal. Desde que não haja interferência alienígena, isto é, humana, todo o seu sistema ecológico permanece em equilíbrio e é capaz de auto-organização.

Neste mundo, não há dominação de uns sobre outros, apenas conexão: o dragão alado de montaria não se subordina ao “dragoneiro”, mas o escolhe num desafio. O enfrentamento físico é encerrado quando ambos se conectam organicamente, e assim conseguem voar em sincronia; quando se mata um animal por defesa, este não pode ser considerado um motivo de alívio ou alegria, mas um fato a lamentar. Mesmo a caça para consumo deve ser um gesto “limpo”, em que se pede desculpas ao animal informando-o que sua alma será libertada e que seu corpo reviverá no corpo do povo que dele se alimente; a autoridade política é também a autoridade familiar. Cada clã possui como chefes um “Pai” e uma “Mãe” idosos, indicando que não há hierarquias de gênero e que a legitimidade do poder provém da experiência e do conhecimento; a participação política e o direito à voz em assembléias em que todos se reúnem, é garantida pelo pertencimento ao clã e pelo domínio da língua. Porém, assim como a língua pode ser assimilada, o pertencimento não é um direito adquirido exclusivamente por descendência ou lugar de nascimento, mas conquistado num processo de iniciação cultural autorizado pelos chefes e selado em um ritual de passagem.

Como ideais políticos, todos estes aspectos são bem compreendidos. Mas, ao revelarem-se também uma forma contemporânea de percepção da realidade, tornam-se bastante problemáticos. Ultrapassam o campo da normatividade para constituir-se como uma nova sociologia deslocada de seus conceitos fundamentais. Note-se a maneira como, de modo implícito, o conceito de “sociedade” aparece em Avatar. O conceito não teria avançado muito desde o século XVIII. Saint-Simon já compreendera a Sociedade como um “ser” independente. Durkheim aprimorou esta observação afirmando que ela não resulta da soma de seus indivíduos mas da interação entre eles. Todas as suas pesquisas partiram e confirmaram o pressuposto da autonomia e transcendência da sociedade em relação aos indivíduos. Porém, como criação coletiva, a Sociedade se impõe ao real jamais identificando-se completamente com ele.

Em Pandora, ao contrário, as árvores sagradas, que seriam a representação mais elementar do próprio clã, não são outra coisa senão o acúmulo literal de vozes e memórias individuais dos antepassados que podem ser “acessadas” uma a uma. Os seres se conectam a estas entidades e entre si fisicamente, não através de um espírito comum, alma do povo, língua ou cultura. É quase desnecessário mencionar que Pandora está impregnada de conceitos tecnológicos. A idéia central do roteiro é, aliás, a da possibilidade de transferência de uma “pessoa” a outro corpo através da tecnologia. A identidade pessoal é determinada pela consciência que habita o corpo, assim como softwares se instalam em hardwares. Há sempre algum grau de determinação do meio material sobre a personalidade, mas o princípio identitário se dá, sobretudo, pela “memória” do indivíduo capaz de garantir a completa unidade do corpo e eliminar qualquer dualidade entre “corpo” e “espírito”.

A atmosfera de Pandora assemelha-se ao interior de um mar profundo em que sementes gigantes movem-se como águas-vivas e poeiras cintilam à luz do sol, planetas e luas que atravessa a floresta. A menor gravidade em relação à Terra, a possibilidade de montanhas flutuantes, sugerem esta inversão de primazia entre a Sociedade e seus elementos. Em menor gravidade, as partes do mundo são suspensas e se tornam mais evidentes. Neste universo em que representação e realidade se indistinguem, assim como não há hierarquias entre sujeito e objeto, a comunicação intersubjetiva entre humanóides, animais e plantas é direta, não mediada por formas culturais.

No entanto, assim co­mo nas religiões ditas “e­­lementares”, tudo o que existe em Pandora resulta de um desdobramento da natureza universal a que todas as coisas estão ligadas. A diferença é que esta enorme “rede” conectiva não é pura metáfora, mas sim algo substantivo. A lua, quase toda uma densa floresta onde a invasão humana não fez seu estrago, é riscada de fios pendulares, cintilantes, prontos a tocar e entrelaçar outras linhas para transferir informações. Já na passagem para o século XX, Durkheim esforçava-se por desfazer a falsa idéia cientificista destes fios materiais que nos ligam simultaneamente à natureza e à vida social.

Tão povoada de cores e brilhos, Pandora nos faz ver a Terra, muito depois do filme, como um lugar mais vazio, pálido e fosco. Os corpos dos sapiens sapiens parecem até mais feios que os humanóides azulados. Os “Povos do Céu” continuam insanos e mesquinhos, cada qual com sua idiossincrasia, mas dominados por uma mesma loucura de auto-destruição. Para aprender com os Na’vi, é preciso esvaziar-se dos conhecimentos humanos, tornar-se “copo vazio”. Paradoxalmente, num universo impregnado da linguagem bio-tecnológica, a ciência é tida como indício de loucura, pois é ela quem, na Terra ou em Pandora, legitima a destruição.

Ainda que o conexionismo seja um avançado ideal político, crer hoje numa realidade conexionista significa repor, sob a inspiração da cibernética, da informática e da genética, a perspectiva imanentista das ciências modernas (européias e oitocentistas) que esta mesma ideologia contemporânea critica. Além de não traduzir a realidade, tampouco analisá-la criticamente, a perspectiva conexionista não permite a compreensão da mudança social como resultado da contradição entre realidade e representação, ou da desigualdade entre sujeito e objeto de poder e conhecimento. Consiste, portanto, de um ideal que apenas pode realizar-se em outro mundo, de uma não-problematização do poder, de um abandono das questões relativas à emancipação.

Mesmo que Avatar sustente críticas importantes ao comportamento humano face à natureza, e que os invasores nocivos sejam derrotados, é Pandora quem se apresenta como possibilidade existencial para a vida, e não uma Terra radicalmente transformada. O “final feliz” não corresponde, portanto, à emancipação crítica em relação à humanidade, à evolução do homem e da razão, mas à desistência e à fuga do mundo humano. O herói apenas revive em liberdade em um novo corpo, assim como os terráqueos, após destruírem seu planeta, buscam outros mundos. Em seu ímpeto de dominação treinado pelas guerras, torna-se líder entre os povos, assumindo a função histórica de unificar todos os clãs. Estruturalmente, nada de muito distinto.

Em última análise, Avatar simplesmente repõe o “mito da fuga planetária”. Porque assistimos a trama também como avatares distanciados da Terra, quase nos esquecemos de que a felicidade dos mocinhos vem acompanhada da destruição ambiental de nosso planeta, o que já não é um problema para o filme. Se não há como salvar a Terra, se o homem é naturalmente egoísta, nossas aspirações políticas se voltam para “um outro mundo possível”, mas bem longe daqui, aqui mesmo, sob as lentes de 3D.
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Samira Feldman Marzochi é pós-graduanda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp
Artigo socializado pelo Jornal da Unicamp, ANO XXIV – Nº 452 e publicado pelo EcoDebate, 06/03/2010

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Base ética científica


O interesse comum como principal base ética científica
O desenvolvimento econômico é, muitas vezes, baseado em inovação tecnocientífica. No entanto, esse desenvolvimento é geralmente realizado em detrimento do desenvolvimento social e da preservação do meio-ambiente. Australiano de nascimento, Hugh Lacey, filósofo da ciência da Universidade de São Paulo (USP) – convidado para uma mesa redonda na 61ª reunião Anual da SBPC – concedeu uma entrevista para a revista ComCiência e falou sobre a maneira como a ciência e a tecnologia são aplicadas no mercado e, sobretudo, no sistema capitalista. A entrevista é de Erica Guimarães e publicada pela revista eletrônica ComCiência, 17-07-2009.
Eis a entrevista:
Qual deveria ser a principal preocupação ética dos cientistas?
A ciência é o entendimento e conhecimento de fenômenos do mundo. Ela possibilita a descoberta de novos fenômenos, às vezes produzidas de forma prática e tecnológica, muitas vezes, sem nenhuma aplicação. Acho que todas as pesquisas, projetos de pesquisa devem começar com uma questão: como essa pesquisa pode ajudar na formação humana? Essa questão ética é a primeira questão. E então, depende da área.
Existe uma preocupação com as questões ecológicas e sociais?
Existe uma preocupação, mas não é suficientemente séria ainda. Os temas que envolvem sustentabilidade, inovação, crescimento econômico, desenvolvimento social, questões tecnocientíficas precisam ser discutidos com mais frequência. Quero como cientistas criar na balança entre inovação e bem estar social. A ciência está dominada pelos interesses econômicos, infelizmente.
Em sua opinião o direito de propriedade intelectual é ético?
Não. Para mim, ética tem a ver com bem estar. Um direito ético deve ser algo que contribui para nossa sociedade. Existe um discurso de que não basta ter produtividade acadêmica, tem que virar patente. Não se pode patentear o conhecimento, mas produtos e processos. É necessário avaliar se as inovações contribuem para o bem estar do cidadão. O problema é que o valor da ciência é sempre maior para o mercado. O conhecimento pertence ao patrimônio da humanidade.
Os problemas sociais são evidentes, sobretudo no Brasil. As iniciativas científicas negligenciam as áreas sociais e emergentes e focam mais em inovações tecnocientíficas?
Acho que temos um dilema. Nos países como Brasil, China e Índia há uma necessidade na área social por conta da pobreza. Hoje, desenvolvimento significa, no mundo inteiro, desenvolvimento econômico baseado em inovação tecnocientífica. E as inovações, podem, muitas vezes, aumentar as diferenças sociais e ter um impacto sobre os problemas ambientais e sociais. Em curto prazo a inovação é positiva, mas em longo prazo existe a possibilidade de destruição.
Como conciliar economia, preocupação ecológica e bem estar social?
Formamos, para isso, instituições como a SBPC. Pode haver uma mobilização de todos os setores ecológicos e sociais. Da economia, ecologia, e sociedade. Mas as universidades estão dependendo e precisando, cada vez mais, de dinheiro, mas acredito que é papel das universidades limitarem a economia sem deixar de lado o bem estar social. É preciso enfatizar a necessidade de outra abordagem.
Original no site:

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O fim do problema mente-cérebro?


Foi a partir da década de 90, considerada a década do cérebro, que essas questões ganharam impulso. As indagações e reflexões envolvendo o cérebro humano emergiram simultaneamente em várias disciplinas (Neurociência, Inteligência Artificial, Filosofia da Mente, Ciência Cognitiva) e recolocaram com força o problema mente-cérebro.
A psicologia do século XX passou então, a disputar espaço com esses outros movimentos científicos. Entre todas as disciplinas que buscavam solução para o milenar problema da causação mental, a neurociência tenha sido talvez a mais aclamada no meio científico. Através das técnicas de neuroimagem que nos permitiram observar a atividade do cérebro humano in vivo, ela nos apresentou uma outra base para questionar a mente humana. Mais do que dividir espaço, a neurociência se propôs a substituir a psicologia.
A neurociência nos diz que muita coisa que hoje nós tratamos como sendo da ordem da psicologia poderá acabar num futuro próximo. O neurocientista americano, Michael Gazzaniga, por exemplo, afirma que a psicologia acabou e que ela vai ser “comida” pelas neurociências. As teorias psicológicas inundadas de idéias e de conceitos psicológicos (tais como apego, ressentimento e inveja) desaparecerão e serão substituídas por teorias neurocientíficas à medida que formos encontrando as bases neurais para esses distúrbios.

Psicologia em crise?

Para João de Fernandes Teixeira, essa é uma questão não só polêmica, mas assustadora. Será então que toda a psicologia poderá um dia ser reduzida à neurociência? Poderá uma pílula exterminar qualquer patologia psicológica? Qual será o papel do psicólogo nas próximas décadas?
É preciso ter cautela, adverte Teixeira. A neurociência já deu grandes saltos, mas tropeçou em muitos obstáculos. A maior dificuldade é explicar eventos intencionais como crenças, desejos e emoções. E afirmar que tudo vai ser reduzido ao cerebral é uma grande aposta.
Quanto ao futuro da psicologia, o professor acredita que é apressado supor que a neurociência irá substituí-la. “A neurociência ainda esbarra na tarefa de identificar os correlatos neurais da experiência consciente, e na minha percepção não há essa incompatibilidade aparente entre psicologia e neurociência. Uma coisa não é incompatível com outra. Eu acredito é na interface entre as duas disciplinas.”
Apesar de grandes ataques que a psicologia tem sofrido nas ultimas décadas, Teixeira afirma que ela sobreviverá se estabelecer relações interdisciplinares. “A especificidade na psicologia estranhamente será ganha caso pertença há um contexto maior, quando nós tivermos um projeto científico maior onde o psicólogo conviva com o neurocientista. É através das interfaces com as outras disciplinas da mente que a psicologia vai tirar sua sobrevivência”, complementa Teixeira.
Texto de Rafaela Sandrini
Edição de Luiz Paulo Juttel

Original em:

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Entrevista com a Dra. Maya Angelou



Marguerite Ann Johnson nasceu em St. Louis, Missouri, no dia 4 de abril de 1928.
Passou a infância na Califórnia, Arkansas, e St. Louis, e viveu com a avó paterna, Annie Henderson, na maior parte de sua infância.
Quando tinha 8 anos, foi estuprada pelo namorado da mãe em St. Louis; isto levou a anos de mudez para Maya que finalmente superou com a ajuda de uma vizinha atenciosa, e um grande amor pela literatura.
Aos 16, Maya se tornou a primeira motorista negra de ônibus em São Francisco; em anos posteriores, tornou-se a primeira mulher negra a ser roteirista e diretora em Hollywood.
Nos anos 60s tornou-se amiga de Martin Luther King Jr. e Malcolm X; serviu no SCLC com Dr. King, e trabalhou durante anos para o movimento de direitos civis. Também nos anos 60, trabalhou e viajou pela África, como jornalista e professora, ajudando vários movimentos de independência africanos. Em 1970, publicou o primeiro livro, I Know Why the Caged Bird Sings, com grande sucesso, e foi nomeado para o Pulitzer Prize em poesia no ano seguinte.
Angelou teve uma carreira longa e distinta, é poeta, escritora, ativista de direitos civis, e historiadora, entre outras coisas. Também é atriz, dançarina, e cantora, atuou na peça de Jean Genet, "The Blacks", e o aclamado seriado, "Roots". Angelou provavelmente é conhecida melhor pelos trabalhos autobiográficos, que incluem I Know Why the Caged Bird Sings e All God's Children Need Travelling Shoes.
Em 1993, Angelou leu um de seus poemas chamado "On the Pulse of Morning", na posse de Bill Clinton como presidente; este foi um dos pontos altos de sua carreira, e novamente a trouxe para as vistas do público. Atualmente, é professora de história americana na Wake Forest University, Carolina do Norte, ainda fazendo suas excursões e dando palestras em vários lugares.
Em abril deste ano, Dra. Maya Angelou foi entrevistada por Oprah Winfrey na passagem de seu aniversário, mais de 70 anos. Oprah perguntou como ela sente diante da velhice que chega.
Resposta: 'animada!'.
Comentando as mudanças no corpo, disse que há muitas, a cada dia. Como os seios, que estão competindo um com o outro para ver qual chega primeiro à cintura. A platéia riu de chorar.
Uma das grandes vozes do nosso tempo, Maya Angelou é uma mulher simples, direta e cheia de sabedoria.
Alguns exemplos:
# Aprendi que aconteça o que acontecer, pode até parecer ruim hoje, mas a vida continua e amanhã melhora.
# Aprendi que dá para descobrir muita coisa a respeito de uma pessoa observando-se como ela lida com três coisas: dia de chuva, bagagem perdida e luzes de árvore de Natal emboladas.
# Aprendi que, independentemente da relação que você tenha com seus pais, vai ter saudade deles quando se forem.
# Aprendi que 'ganhar a vida' [making a living] não é o mesmo que 'ter uma vida' [making a life].
# Aprendi que a vida às vezes nos oferece uma segunda oportunidade.
# Aprendi que a gente não deve viver tentando agarrar tudo pela vida afora; tem que saber abrir mão de algumas coisas.
# Aprendi que quando decido alguma coisa com o coração, em geral vem a ser a decisão correta.
# Aprendi que mesmo quando tenho dores, não tenho que ser um fardo para os que me cercam.
# Aprendi que todo dia a gente deve estender a mão e tocar alguém. As pessoas adoram um abraço apertado, ou mesmo um simples tapinha nas costas.
# Aprendi que ainda tenho muito o que aprender.
# Aprendi que as pessoas esquecem o que você diz, esquecem o que você faz, mas não esquecem como você faz com que se sintam.
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domingo, 14 de setembro de 2008

Filosofia


Filosofia Pré-Socrática, Filosofia Clássica, Filosofia Pós-Socrática, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna, Filosofia Contemporânea, sofistas, definição, principais filósofos, escolas filosóficas
Introdução:
A palavra filosofia é de origem grega e significa amor à sabedoria. Ela surge desde o momento em que o homem começou a refletir sobre o funcionamento da vida e do universo, buscando uma solução para as grandes questões da existência humana. Os pensadores, inseridos num contexto histórico de sua época, buscaram diversos temas para reflexão. A Grécia Antiga é conhecida como o berço dos pensadores, sendo que os sophos ( sábios em grego ) buscaram formular, no século VI a.C., explicações racionais para tudo aquilo que era explicado, até então, através da mitologia.
Os Pré-Socráticos
Podemos afirmar que foi a primeira corrente de pensamento, surgida na Grécia Antiga por volta do século VI a.C. Os filósofos que viveram antes de Sócrates se preocupavam muito com o Universo e com os fenômenos da natureza. Buscavam explicar tudo através da razão e do conhecimento científico. Podemos citar, neste contexto, os físicos Tales de Mileto, Anaximandro e Heráclito. Pitágoras desenvolve seu pensamento defendendo a idéia de que tudo preexiste a alma, já que esta é imortal. Demócrito e Leucipo defendem a formação de todas as coisas, a partir da existência dos átomos.
Período Clássico
Os séculos V e IV a.C. na Grécia Antiga foram de grande desenvolvimento cultural e científico. O esplendor de cidades como Atenas, e seu sistema político democrático, proporcionou o terreno propício para o desenvolvimento do pensamento. É a época dos sofistas e do grande pensador Sócrates.Os sofistas, entre eles Górgias, Leontinos e Abdera, defendiam uma educação, cujo objetivo máximo seria a formação de um cidadão pleno, preparado para atuar politicamente para o crescimento da cidade. Dentro desta proposta pedagógica, os jovens deveriam ser preparados para falar bem ( retórica ), pensar e manifestar suas qualidades artísticas.Sócrates começa a pensar e refletir sobre o homem, buscando entender o funcionamento do Universo dentro de uma concepção científica. Para ele, a verdade está ligada ao bem moral do ser humano. Ele não deixou textos ou outros documentos, desta forma, só podemos conhecer as idéias de Sócrates através dos relatos deixados por Platão. Platão foi discípulo de Sócrates e defendia que as idéias formavam o foco do conhecimento intelectual. Os pensadores teriam a função de entender o mundo da realidade, separando-o das aparências. Outro grande sábio desta época foi Aristóteles que desenvolveu os estudos de Platão e Sócrates. Foi Aristóteles quem desenvolveu a lógica dedutiva clássica, como forma de chegar ao conhecimento científico. A sistematização e os métodos devem ser desenvolvidos para se chegar ao conhecimento pretendido, partindo sempre dos conceitos gerais para os específicos.
Período Pós-Socrático
Está época vai do final do período clássico (320 a.C.) até o começo da Era Cristã, dentro de um contexto histórico que representa o final da hegemonia política e militar da Grécia.Ceticismo : de acordo com os pensadores céticos, a dúvida deve estar sempre presente, pois o ser humano não consegue conhecer nada de forma exata e segura.Epicurismo : os epicuristas, seguidores do pensador Epicuro, defendiam que o bem era originário da prática da virtude. O corpo e a alma não deveriam sofrer para, desta forma, chegar-se ao prazer.Estoicismo : os sábios estóicos como, por exemplo Marco Aurélio e Sêneca, defendiam a razão a qualquer preço. Os fenômenos exteriores a vida deviam ser deixados de lado, como a emoção, o prazer e o sofrimento.
Pensamento Medieval
O pensamento na Idade Média foi muito influenciado pela Igreja Católica Desta forma, o teocentrismo acabou por definir as formas de sentir, ver e também pensar durante o período medieval. De acordo com Santo Agostinho, importante teólogo romano, o conhecimento e as idéias eram de origem divina. As verdades sobre o mundo e sobre todas as coisas deviam ser buscadas nas palavras de Deus. Porém, a partir do século V até o século XIII, uma nova linha de pensamento ganha importância na Europa. Surge a escolástica, conjunto de idéias que visava unir a fé com o pensamento racional de Platão e Aristóteles. O principal representante desta linha de pensamento foi Santo Tomás de Aquino.
Pensamento Filosófico
Com o Renascimento Cultural e Científico, o surgimento da burguesia e o fim da Idade Média, as formas de pensar sobre o mundo e o Universo ganham novos rumos. A definição de conhecimento deixa de ser religiosa para entrar num âmbito racional e científico. O teocentrismo é deixado de lado e entre em cena o antropocentrismo ( homem no centro do Universo ). Neste contexto, René Descartes cria o cartesianismo, privilegiando a razão e considerando-a base de todo conhecimento. A burguesia, camada social em crescimento econômico e político, tem seus ideais representados no empirismo e no idealismo.No século XVII, o pesquisador e sábio inglês Francis Bacon cria um método experimental, conhecido como empirismo. Neste mesmo sentido, desenvolvem seus pensamentos Thomas Hobbes e John Locke.O iluminismo surge em pleno século das Luzes, o século XVIII. A experiência, a razão e o método científico passam a ser as únicas formas de obtenção do conhecimento. Este, a única forma de tirar o homem das trevas da ignorância. Podemos citar, nesta época, os pensadores Immanuel Kant, Friedrich Hegel, Montesquieu, Diderot, D'Alembert e Rosseau.O século XIX é marcado pelo positivismo de Auguste Comte. O ideal de uma sociedade baseada na ordem e progresso influencia nas formas de refletir sobre as coisas. O fato histórico deve falar por si próprio e o método científico, controlado e medido, deve ser a única forma de se chegar ao conhecimento.Neste mesmo século, Karl Marx utiliza o método dialético para desenvolver sua teoria marxista. Através do materialismo histórico, Marx propõe entender o funcionamento da sociedade para poder modificá-la. Através de uma revolução proletária, a burguesia seria retirada do controle dos bens de produção que seriam controlados pelos trabalhadores.Ainda neste contexto, Friedrich Nietzsche, faz duras críticas aos valores tradicionais da sociedade, representados pelo cristianismo e pela cultura ocidental. O pensamento, para libertar, deve ser livre de qualquer forma de controle moral ou cultural.
Época Contemporânea
Durante o século XX várias correntes de pensamentos agiram ao mesmo tempo. As releituras do marxismo e novas propostas surgem a partir de Antonio Gramsci, Henri Lefebvre, Michel Foucault, Louis Althusser e Gyorgy Lukács. A antropologia ganha importância e influencia o pensamento do período, graças aos estudos de Claude Lévi-Strauss. A fenomenologia, descrição das coisas percebidas pela consciência humana, tem seu maior representante em Edmund Husserl. A existência humana ganha importância nas reflexões de Jean-Paul Sartre, o criador do existencialismo.

Original em:

sábado, 31 de março de 2007

A existência ética

Da obra: Convite à Filosofia
De Marilena Chauí
Ed. Ática, São Paulo, 2000.


Senso moral e consciência moral

Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral.

Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição, vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral.

Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imitá-la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral.

Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacinas de seres humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às custas da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos manifestam nosso senso moral.

Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida, com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que fazer? Qual a ação correta?

Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje apoiá-la, é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como se responsabilizar plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho. Ambos estão desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxílio de suas famílias (se as tiverem).

Se ela for apenas estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro mudarão para sempre. Se trabalha, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia não contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo?

Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo?

Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas? Que fazer? Se, enquanto está atormentado pela decisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a outra e, conhecendo uma delas, deve contar a ela o que viu? Em nome da amizade, deve falar ou calar?

Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio? Que fazer?

Situações como essas – mais dramáticas ou menos dramáticas – surgem sempre em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam apenas nosso senso moral, mas também põem à prova nossa consciência moral, pois exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas, porque somos responsáveis por nossas opções.

Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros.

O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva.


Juízo de fato e de valor

Se dissermos: “Está chovendo”, estaremos enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato. Se, porém, falarmos: “A chuva é boa para as plantas” ou “A chuva é bela”, estaremos interpretando e avaliando o acontecimento. Nesse caso, proferimos um juízo de valor.

Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são. Em nossa vida cotidiana, mas também na metafísica e nas ciências, os juízos de fato estão presentes. Diferentemente deles, os juízos de valor - avaliações sobre coisas, pessoas e situações - são proferidos na moral, nas artes, na política, na religião.

Juízos de valor avaliam coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus, desejáveis ou indesejáveis.

Os juízos éticos de valor são também normativos, isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto.

Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade. Enunciam também que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral.

Como se pode observar, senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida cultural, uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e negativos que devem respeitar ou detestar.

Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos? A diferença entre a Natureza e a Cultura. A primeira, como vimos, é constituída por estruturas e processos necessários, que existem em si e por si mesmos, independentemente de nós: a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos necessários podemos constatar e explicar.

Por sua vez, a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam a si mesmos e suas relações com a Natureza, acrescentando-lhe sentidos novos, intervindo nela, alterando-a através do trabalho e da técnica, dando-lhe valores. Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos com a Natureza, através da agricultura. Considerar a chuva bela pressupõe uma relação valorativa dos humanos com a Natureza, percebida como objeto de contemplação.

Freqüentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do senso moral e da consciência moral, porque somos educados (cultivados) para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los. A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.


Ética e violência

Quando acompanhamos a história das idéias éticas, desde a Antiguidade clássica (greco-romana) até nossos dias, podemos perceber que, em seu centro, encontra-se o problema da violência e dos meios para evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social.

Evidentemente, as várias culturas e sociedades não definiram e nem definem a violência da mesma maneira, mas, ao contrário, dão-lhe conteúdos diferentes, segundo os tempos e os lugares. No entanto, malgrado as diferenças, certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira, nas várias culturas e sociedades, formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos. Fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, contrária aos seus interesses e desejos, contrária ao seu corpo e à sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros.

Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal, crime e vício circunscrevem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo. Simultaneamente, erguem os valores positivos – o bem e a virtude – como barreiras éticas contra a violência.

Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. A violência é a violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém. Eis por que o assassinato, a tortura, a injustiça, a mentira, o estupro, a calúnia, a má-fé, o roubo são considerados violência, imoralidade e crime.

Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a Natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros.

A ética é normativa exatamente por isso, suas normas visando impor limites e controles ao risco permanente da violência.


Os constituintes do campo ético

Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética.

A consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação. Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais, as exigências feitas pela situação, as conseqüências para si e para os outros, a conformidade entre meios e fins (empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível), a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo (se o estabelecido for imoral ou injusto).

A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas, ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas.

O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral, principal constituinte da existência ética.

O sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições:
● ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;
● ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;
● ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas;
● ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta.

O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas.

Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade.

Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomo[i].

Do ponto de vista dos valores, a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que consideram ser o bem e a virtude. Por realizar-se como relação intersubjetiva e social, a ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas, econômicas e culturais da ação moral.

Conseqüentemente, embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui (universal porque seus valores são obrigatórios para todos os seus membros), está em relação com o tempo e a História, transformando-se para responder a exigências novas da sociedade e da Cultura, pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo.

Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores ou fins morais, o campo ético é ainda constituído por um outro elemento: os meios para que o sujeito realize os fins.

Costuma-se dizer que os fins justificam os meios, de modo que, para alcançar um fim legítimo, todos os meios disponíveis são válidos. No caso da ética, porém, essa afirmação deixa de ser óbvia.

Suponhamos uma sociedade que considere um valor e um fim moral a lealdade entre seus membros, baseada na confiança recíproca. Isso significa que a mentira, a inveja, a adulação, a má-fé, a crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral e ações que os empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais.

No entanto, poderia acontecer que para forçar alguém à lealdade seria preciso fazê-lo sentir medo da punição pela deslealdade, ou seria preciso mentir-lhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas. Nesses casos, o fim – a lealdade – não justificaria os meios – medo e mentira? A resposta ética é: não. Por quê? Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral, que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do fim ético.

No caso da ética, portanto, nem todos os meios são justificáveis, mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação. Em outras palavras, fins éticos exigem meios éticos.

A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes.

Poderíamos indagar se a educação ética não seria uma violência. Em primeiro lugar, porque se tal educação visa a transformar-nos de passivos em ativos, poderíamos perguntar se nossa natureza não seria essencialmente passional e, portanto: forçar-nos à racionalidade ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea? Em segundo lugar, porque se a tal educação visa a colocar-nos em harmonia e em acordo com os valores de nossa sociedade, poderíamos indagar se isso não nos faria submetidos a um poder externo à nossa consciência, o poder da moral social. Para responder a essas questões precisamos examinar o desenvolvimento das idéias éticas na Filosofia.

[i] A palavra autônomo vem do grego: autos (eu mesmo, si mesmo) e nomos (lei, norma, regra). Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a lei, a norma, a regra é autônomo e goza de autonomia ou liberdade. Autonomia significa autodeterminação. Quem não tem a capacidade racional para a autonomia é heterônomo. Heterônomo vem do grego: hetero (outro) e nomos; receber de um outro a lei, a norma ou a regra.

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