"Comissão da Verdade é uma conquista", diz José Gregori
Carolina Oms
Especial para Terra Magazine
Coordenador do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), lançado em 1996 durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o ex-ministro da Justiça de FHC José Gregori minimiza a polêmica em torno da terceira edição do programa. "Foi um acidente de percurso", diz sobre as divergências entre o ministro da Defesa Nelson Jobim e Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos.
O documento, que propõe a criação de uma Comissão Nacional da Verdade, para apurar os crimes cometidos durante a ditadura, irritou os militares e o ministro da Defesa, Nelson Jobim.
Gregori defende a versão atual do plano: "A Comissão da Verdade é uma conquista, ela será benéfica para a sociedade brasileira", mas faz ressalvas sobre outros pontos polêmicos, como a questão do aborto: "Talvez, a redação do plano não tenha sido feliz".
Ex-secretário Nacional de Direitos Humanos, Gregori também observa que a mídia só "se interessou pela briga entre o setor civil e o setor militar do governo e não pelo plano" e que não há sentido opor os planos do governo Lula ao do governo de FHC: "A oposição ocorreu em decorrência da crise (entre Jobim e Vannuchi)", explica.
Confira a entrevista:
Terra Magazine - Como o senhor recebeu o Programa Nacional de Direitos Humanos?
José Gregori: Essa questão de Planos de Direitos Humanos é positiva, estimuladora de práticas que ajudam a promoção dos Direitos Humanos. Vem de uma recomendação da Conferência de Viena em 1983.
Eu, a pedido do então ministro da Justiça Nelson Jobim e do presidente Fernando Henrique Cardoso, coordenei a feitura do primeiro plano, acho que ele foi muito positivo no sentido das reivindicações e das medidas que poderiam ser tomadas, umas ficaram esquecidas no papel do plano, mas outras, que até pareciam utópicas, foram realizadas. Inclusive, o primeiro Plano teve a consequência de criar a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, essa secretaria que existe até hoje. Em tese, eu sou um dos defensores da ideia dos planos nacionais.
Há importantes alterações na versão atual?
Os tempos são outros. Os Direitos Humanos sempre acompanham problemas superados ou que permanecem. O primeiro plano tinha um viés de direitos civis, estávamos recém-saídos do regime militar. As questões de cidadania, liberdade, participação política, de minorias eram problemas muito atuais naquela época, por isso a feição do plano é de natureza civil.
O segundo PNDH abriu para concepção moderna de Direitos Humanos que abrange não só os direitos civis, mas os econômicos, sociais e culturais. E esse terceiro está nessa mesma linha: Ser um instrumento das políticas de Direitos Humanos.
Mas então qual o motivo de tanta polêmica em torno do Plano?
Foi um acidente de percurso. Houve um desentendimento entre Ministério da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos, em cima de uma questão que não é totalmente pacificada na sociedade brasileira, que é saber se a anistia, uma conquista extraordinária, contemplou não só os que sofreram as represálias do regime então vigente no Brasil ou se aqueles que infringirão sofrimentos a esses se eles também são abrangidos pela anistia, a maioria, militares.
E como o senhor se posiciona nessa questão?
Eu sempre, historicamente, desde de que participei da campanha da anistia, acho que ela foi reivindicada e obtida de maneira ampla e irrestrita. Não teria propósito, à luz da luta pela anistia, você querer processar alguém que tenha participado da luta armada, assim como também não há base para processar um sujeito que trabalhou no DOI-CODI.
É uma realidade dura, mas a verdade é que todos os lados envolvidos em transgressões legais foram beneficiados, ninguém quis saber o que o Brizola tinha feito ou não. Ele voltou e um ano depois ele era governador do Rio de Janeiro. E a mesma coisa com dezenas e dezenas de políticos. Afinal de contas, hoje, quem governa esse país são os que sofreram as conseqüências do regime autoritário.
Você tem que interpretar a Lei da Anistia do sentido de complementá-la, eu mesmo fiz a Lei dos Desaparecidos Políticos. Houve uma comissão que julgou pedidos de indenização, recolheu fartíssimo material. Dentro da Lei da Anistia você pode tirar conseqüências, mas sem negar essa característica que foi beneficiar todos os envolvidos na luta política de um determinado período político.
E a apuração dos crimes contra os direitos humanos durante a ditadura militar?
Isso está fora do campo da Lei da Anistia, você pode recolher material e fazer levantamentos históricos...
Mas o que se exige é abertura dos arquivos...
Eu acho que a Comissão da Verdade é uma conquista, ela será benéfica para a sociedade brasileira no seu conjunto, principalmente para as novas gerações. Não foi uma coisa boa, por exemplo, o Rui Barbosa ter pedido para queimar os arquivos da escravidão. Também acho que foi uma oportunidade perdida não termos levantado os arquivos do período ditatorial do Getúlio Vargas.
É benéfica uma comissão que recolha processamento, que analise e que esse material seja colocado à disposição de todos os lados. Dentro de uma redação que não seja conflitiva, a Lei da Verdade é uma coisa positiva.
E, no entanto, esse também é um ponto conflituoso...
Devido a não-pacificação da ideia da anistia. Se você dá a entender a um setor que a anistia não é ampla e irrestrita, esse setor se encolhe, isso é natural. Ficando claro que a Lei da Anistia é imodificável, que foi conseguida na sociedade brasileira e homologada por todos os lados como uma pedra em cima do passado, aí as buscas e a documentação ficarão mais fáceis.
O plano possui também outros pontos polêmicos, como a questão do aborto, nesta terça-feira, 12, Lula recuou sobre a defesa do aborto...
Esses problemas existem na sociedade brasileira e talvez a redação do plano não tenha sido feliz. Às vezes você propõe uma redação que defende uma tese que ainda não tem consenso na sociedade.
Mas os PNDH's deveriam defender consensos e não propor discussões? No momento, ele está propondo discussões, o senhor acha isso positivo?
O problema é o seguinte: esse plano provocou uma crise e logo depois uma espécie de impasse, precisamos superar essa situação, a meu ver o não-plano seria extremamente negativo e, principalmente a não-Comissão da Verdade. Isso seria extremamente negativo para a história dos Direitos Humanos no Brasil.
Corre-se esse risco?
Acho que a gente tem que fazer de tudo para evitar isso. O desejável seria que o plano saísse, como os dois primeiros, sem esse tumulto. Agora que veio o tumulto nós temos que resolve-lo, para não sacrificar uma coisa que é um avanço. Um terceiro, quarto, depois um décimo plano é um sinal de que o país entrou na trilha das democracias.
Como avalia a maneira como o PNDH foi recebido pela mídia?
O problema é que a mídia se interessou, no começo, pela briga entre o setor civil e o setor militar do governo e não pelo plano. Se não tivesse havido essa crise, esse plano seria lido por pouca gente.
Nesse sentido, pode ser positiva a polêmica?
Às vezes, a gente tem que procurar dialeticamente um lado favorável. Tudo isso mostrou que a questão dos Direitos Humanos não é um enfeite, ela é tão importante quanto economia, saúde, educação e outras matérias, digamos assim, de base. E mostrou também que o campo de abrangência envolve as liberdades e garantias civis, o econômico, o social e o cultural básico para a pessoa.
A concepção dos Direitos Humanos hoje é que eles no seu aspecto civil, econômico, social constitui uma espécie de unidade, como é a santíssima trindade do catolicismo. Isso é uma bruta novidade para boa parte da população brasileira.
A defesa dos direitos humanos, não deveria ser uma política de Estado? Fugindo um pouco do caráter personalista que parece ter se impregnado aos temas, o Plano do Lula ou do Fernando Henrique Cardoso?
Exatamente, os Direitos Humanos devem ser uma política de Estado. Não tem sentido, nessa questão, opor um ao outro. A oposição ocorreu por causa da crise. E toda vez que tem uma crise no governo você não pode esperar que a oposição fique pescando no rio.
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