quinta-feira, 2 de abril de 2009

Entre o sonho e a ficção

Conexão entre criação literária e a fantasia pode surgir nos sonhos; o mundo onírico abre as portas do inconsciente e traz respostas para o escritor
por Moacyr Scliar
FOTO: DETALHE DE A RECONCILIAÇÃO DE OBERON E TITANIA, 1847, ÓLEO SOBRE TELA DE JOSEPH NOEL PATON / GALERIA NACIONAL DA ESCÓCIA, EDINBURGO
Há exatos 100 anos, em 1908, Sigmund Freud deu uma palestra (depois transformada em texto) intitulada Ficcionistas e seus devaneios. Nela, o pai da psicanálise enfatizava a conexão entre criação literária e fantasia, que, no ser humano pode surgir de várias maneiras, através de devaneios, de sonhos. Essa conexão explica a razão pela qual, desde há muito, a literatura fala sobre o sonhar. Para começar, na Bíblia as narrativas sobre sonhos são numerosas, mas o mesmo ocorre em narrativas míticas, folclóricas, o que levou Joseph Campbell a afirmar: “Mitos são sonhos públicos, sonhos são mitos privados”.
Os grandes escritores trabalharam muito com a idéia do sonho, e Shakespeare é disso um exemplo. Afinal, foi ele quem disse, em A tempestade: “Somos feitos da mesma matéria que os nossos sonhos”. O tema é recorrente na obra shakesperiana; uma de suas peças tem como título Sonho de uma noite de verão. Ali há um mundo da realidade (a cidade de Atenas) e um dos sonhos, povoado por fadas e elfos, ambos os mundos interagindo constantemente. Muitos dos sonhos shakesperianos têm caráter premonitório. Assim, antes do assassinato de Júlio César, na peça do mesmo nome, sua esposa Calpúrnia vê, em sonhos, a estátua de César, da qual o sangue jorra “por 100 orifícios”.
Vários escritores usaram os próprios sonhos como matéria-prima da ficção. O exemplo mais famoso é o do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge. Aconteceu num dia de outono em 1797. Por causa de uma disenteria, Coleridge tomou um pouco de ópio. A droga deixou-o sonolento e ele adormeceu, enquanto lia uma obra que descrevia o palácio construído pelo imperador mongol Kublai Khan. Dormindo, sonhou com um poema que descrevia esse palácio e que tinha “não menos do que 200 ou 300 versos”. Um poema extraordinário que Coleridge, acordando, tratou de colocar no papel. Mas foi interrompido por um homem da localidade de Porlock (desde então a expressão “o homem de Porlock” serve para designar um intrometido que surge no momento mais inoportuno) e não conseguiu terminar o poema, que foi publicado inacabado. Robert Louis Stevenson freqüentemente sonhava com contos inteiros, e foi um sonho que lhe deu a idéia para Dr. Jeckyll e Mr. Hyde (O médico e o monstro). Já Mary Shelley, em sua introdução a Frankenstein, conta que desde criança gostava de escrever, mas tinha um prazer ainda maior: devanear. “Meus sonhos eram mais fantásticos e agradáveis que meus escritos. Eram só meus.” Ou seja: escrever significa compartilhar; sonhar, não. Sonhar é construir mitos privados, como disse Campbell.
A conexão entre sonhos e ficção serviu de mote para, pelo menos, dois livros publicados nos Estados Unidos, com depoimentos de escritores sobre seus sonhos:Tiger garden (O jardim do tigre), editado por Nicholas Royle, e Writers dreaming: 26 writers talk about their dreams and the creative process (Escritores sonhando: 26 escritores falam sobre seus sonhos e o processo criativo), editado por Naomi Epel. Neste último figuram dois best-sellers, Stephen King e Isabel Allende. O primeiro diz que usou em um de seus livros, Salem’s Lot (A hora do vampiro), um pesadelo da infância para descrever uma casa mal-assombrada. Já Isabel Allende conta que escreveu as últimas 15 páginas de A casa dos espíritos pelo menos dez vezes, sem ficar satisfeita com o tom desse final. Foi então que sonhou que falava a seu falecido avô sobre o livro, e, ao acordar, tinha a solução para o problema: “O epílogo deveria ter o tom de uma neta que simplesmente narra uma história ao avô”. A pergunta se impõe: será que no fundo ela já não sabia disso? Provavelmente sim: a resposta para seu problema ficcional estava no inconsciente. O sonho só fez o favor de abrir a porta desse inconsciente. O que, para um escritor, é um grande auxílio.
Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seguidores

Visualizações nos últimos 30 dias

Visitas (clicks) desde o início do blog (31/3/2007) e; usuários Online:

Visitas (diárias) por locais do planeta, desde 13/5/2007:

Estatísticas